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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

04
Jul24

#11/2024 - Apneia, Tânia Ganho:

livrosparaadiarofimdomundo

Apneia

Casa das Letras

690 páginas

Às vezes, apetece-nos mergulhar num livro de cabeça, abandonarmo-nos a ele e deixar que essa leitura nos absorva, enquanto durar. Foi nesse estado de espírito que peguei neste livro. Recomendadíssimo por uma amiga, que partilha comigo muitas leituras e um gosto muito semelhante, sabia, à partida, que não me iria desiludir. O livro é extenso e prometia boas horas de leitura. Hoje, à distância de uma semana, penso nessa amiga, a entrar no gabinete e a dizer-me "tens de ler este livro." Ela sabia o que estava a dizer.

Não resistindo a um trocadilho fácil, diria que lemos este livro em apneia, tal a intensidade das suas páginas. É quase uma armadilha, o leitor chega ali, desprevenido, lê dois ou três capítulos (os capítulos são curtos) e é, literalmente, fisgado e arrastado para a narrativa. 

O livro conta a história de Adriana que abandona o marido Alessandro, levando consigo o filho de cinco anos e é partir dessa decisão que a narrativa ganha fôlego. Em minha opinião, todo o livro evidencia uma enorme inteligência na sua composição, a estrutura mimetiza a mensagem. As primeiras páginas são ainda evasivas, incertas, ainda não conhecemos Adriana, aquele casamento parece ter alguns porblemas, alguma instabilidade, mas pouco percetível, porque a verdade é que os danos são subtilmente inflingidos, de maneira insidiosa, minando a integridade psicológica de Adriana. É ao longo da leitura que nos é revelado o alcance do mal. Alessandro é metódicamente cruel, meticuloso no mal que exerce e Adriana é remetida à metáfora da rã mergulhada na água que vai aquecendo até a aniquilar, porque a habituação a impede de reagir aos sinais de alarme. É este o tipo de violência de que Adriana é objeto. Outro aspeto a sublinhar é, pegando num conceito da teoria literária, o facto de Adriana ser verdadeiramente uma personagem modelada, que se transforma e se transfigura num processo que começa no instante em que abandona o seu casamento. Há uma trajetória demorada que leva a personagem de uma espécie de passividade e apatia à mulher que bate o pé, diz não, enfrenta e confronta, recorre a todos os meios para se salvar a si e ao filho do polvo maldoso que são as ações despudoradas do seu agressor, porque, sem levantar um dedo, o marido é um predador, um manipulador, uma aranha que tece a teia onde os incautos se deixam enredar. O ritmo da narrativa é, por isso, muito mais rápido no final do livro, precipitando os acontecimentos. A construção das três personagens, pai, mãe e filho, é uma das chaves da qualidade deste livro, são todos inesquecíveis. O embate de Adriana com uma justiça lenta, enviesada por narrativas contraditórias, quase preguiçosa, negligente ou excessivamente cautelosa, revela uma dimensão escondida de todas as questões ligadas à violência doméstica e às situações de todo e qualquer abuso, terreno minado onde ninguém parece querer aventurar-se, arriscar, procurar a verdade. A extensão do livro espelha estes meandros de lentos avanços e demasiados recusos, de profunda impotência, solidão e revolta das vítimas, condenadas inexoravalmente à dúvida, à descrença, a rótulos que comprometem a fiabilidade das suas narrativas. É kafkiano! Adriana e o filho são fustigados por uma inércia que parece favorecer sempre o agressor. 

Dizia a minha amiga: "É um livro que nos persegue", eu digo que nos assombra, mas criamos uma tal empatia com Adriana e o filho, prendemos a respiração juntamente com eles e corremos pelas páginas na esperança de que ambos encontrem uma saída da teia malevolamente tecida à volta deles, ansiando para que se libertem, venham ao de cima, inspirem finalmente o ar de que precisam e consigam, enfim, deixar de viver em apneia.

Que leitura!  que difícil que é fazer-lhe justiça. 

Não deixem escapar este livro, é poderoso, impregna-se em nós e obceca-nos. Adoro este efeito de um livro em mim. Que experiência de leitura.

27
Jun24

#10/2024 - A voz das Mulheres, Miriam Toews: ethos e logos.

livrosparaadiarofimdomundo

 

Alfaguara

240 páginas

Mais uma vez a Alfaguara continua a ser a editora que melhores horas de leitura me tem proporcionado...

A primeira vez que vi este livro, nem sequer li a sinopse. É verdade, parecia-me que, pelo título, não seria bem um livro para mim. Vai daí, mantém-se a veracidade da sabedoria popular: quem desdenha quer comprar... Na Feira do livro de Lisboa, a minha filha falou-me nesta obra, referindo que as críticas eram boas, concedi ler a sinopse e ainda não foi aí que ele me interpelou. Mas uma mãe tem tendência a fazer a vontade à filha e o livro veio para casa. Foi o primeiro que li no (abundante) rescaldo da feira do livro... que pena seria se não lesse este livro! Comecemos, por isso, pelo fim, é, das leituras deste ano, a que recomendo com mais veemência. A dizer a verdade, este ano tenho muito para recomendar!

A voz das mulheres parte de um episódio verídico. Numa remota comunidade menonita, algumas mulheres são vítimas de violência sexual, que os homens começam por atribuir a demónios e ao castigo pelos seus pecados. No entanto, a verdade revelada é bem atroz. As mulheres tinham sido sedadas por alguns homens da comunidade para as violarem repetidamente. Dito assim, a questão que se coloca é para quê ler este livro? Mas é que o livro não se debruça sobre a narrativa dessas atrocidades, antes sobre a forma como estas mulheres tentarão superá-las e sobreviver-lhes, resgatando a sua vontade e, pelo caminho, a sua dignidade, grandeza e coragem. 

A narrativa concentra-se - quase à maneira das tragédias clássicas pela concentração espácio-temporal - em duas sessões secretas que as mulheres levam a cabo para discutirem o que fazer sobre o que lhes aconteceu. A tessitura dessas conversas é que torna o livro interessante. Há páginas inesquecíveis neste volume. As mulheres discutem a sua condição, o perdão, a existência de Deus, a maneira como se posicionam face aos imperativos da comunidade a que pertencem, dividem-se entre a sua identidade e a sua dignidade. São seres apenas de palavras, são o seu prórpio discurso e é pelo discurso que crescem, superam as grilhetas que as oprimem, revelando-se seres heróicos, dotados de uma improvável capacidade de amar. Enfim, estas são das páginas mais belas que já li em livro. 

O que me parece extraordinário é a forma subtil como o horror vivido por estas mulheres é revelado ao longo do livro, sem sensacionalismo, mas com crueza, nunca em quantidade, são pouquíssimas as revelações feitas, mas irrompem com uma força que nos dilacera e abala inexoravelmente. Diria que a autora, mais do que uma contadora de histórias, é uma fazedora de histórias, no sentido em que as tece, que as urde, palavra a palavra, revelando tudo, sem o dizer diretamente. É a arte de dizer, é ser pela palavra, porque é através do silêncio que se anula o outro, é quando não o validamos, quando não o reconhecemos que lhe roubamos tudo, a identidade, a dignidade, a existência. O facto de as mulheres terem recuperado a sua voz é que lhes permite libertarem-se do jugo, da violência. Por isso este livro, mais do que ação, é manifesto como potenciador da ação, da coragem, da descoberta pasmada de que as mulheres podem tomar o seu destino nas mãos.

Talvez nenhuma destas palavras faça verdadeira justiça a este romance extraordinário, mas não desdenhem, mercemos este livro!

11
Mai24

#10/2024 - Hotel Savoy, Joseph Roth: da metáfora

livrosparaadiarofimdomundo

Hotel Savoy

D. Quixote,

154 páginas

Joseph Roth é um dos meus autores preferidos. Há qualquer coisa na sua escrita que me prende, não sei se umas certas notas de nostalgia, não sei se a elegância da escrita, não sei..., mas gosto sempre dos seus livros.

Este Hotel Savoy, parafraseando uma das frases do próprio livro, parece-me o mais russo dos seus romances, quase próximo de Dostoievski. Há, quanto a mim, uma tensão social latente, emergente, entre os habitantes da cidade onde se situa o Hotel, entre os hóspedes do Hotel, entre os hóspedes e os funcionários do hotel. Tudo é tensão neste livro.

Gabriel Dan é judeu, foi prisioneiro de guerra, durante três anos, num campo na Sibéria, regressa a casa, passando por uma espécie de peregrinação desde o campo de prisioneiros, desempenhando várias funções subalternas e assalariadas até ali chegar: a uma cidade que fica às portas da Europa, ao hotel mais europeu daquela cidade oriental. Ser o Hotel mais europeu significava que tinha um porteiro fardado, criadas de toucas brancas, casas de banho inglesas, elevadores, lâmpadas elétricas... enfim, pequenos luxos conotados com a Europa.

Não consigo deixar de ver aquele hotel, onde o protagonista, apesar de pobre e desenraizado, pode hospedar-se, embora num dos quartos mais baratos, como uma metáfora da Europa, tanto do período após a Primeira Guerra Mundial, como da de hoje, aquelas em que vivemos: igualmente ameaçada pela guerra, igualmente percorrida por hordas de pessoas em busca de  um lugar de ser com dignidade. Esta hipótese de leitura sustenta-se em algumas passagens da obra, que são quase fragrantes, denúncias de um quadro de pobreza, abandono, assimetrias sociais e ecnómicas, que volvido um século, persistem na Europa e continuam a separar as pessoas em função do que possuem. No Hotel Savoy, as pessoas importantes, ricas e poderosas estão hospedadas nos andares inferiores, nos quais os quartos são arejados, amplos e limpos por criadas de touca branca, porque neles há uma maior preocupação com a limpeza. Quanto mais se sobe nos andares, maior é a pobreza, quando não a indigência dos hóspedes, doentes, dependentes de usurários que deles se aproveitam, subalimentados, vendo-se obrigados a entregarem-se a papéis degradantes para poderem subsistir. 

Diz-nos o narrador que, em todas as cidades do mundo, há sempre hotéis Savoy, onde uns vivem e outros morrem... 

Os excluídos, por tudo isto, encontram-se sempre em trânsito, ambicionando um outro lugar, acreditando que, algures, haverá uma cidade, sempre a próxima cidade, um outro país - linha do horizonte que nunca se alcança - onde finalmente poderão ser felizes e escapar à sua condição: Viena, Paris, a América.

É impossível não estabelecer o paralelismo com a atualidade, com a Europa de hoje, a cuja porta tantos tentam uma vida melhor.

Repito, gosto de livros que me interpelam, que me deixam cicatrizes, que me levam a olhar para o outro com as lentes da empatia e da tolerância, daí que goste deste livro, ainda que ele me tenha deixado um pouco desconcertada.

Recomendo para ler e, em especial, para reler, porque nem todas as implicações são óbvias na primeria leitura.

 

 

07
Mai24

#9/2024 _ Felizes anos de castigo, Fleur Jaeggy: a força das palavras não ditas

livrosparaadiarofimdomundo

Felizes Anos de Castigo

Alfaguara

113 páginas

Não conhecia a autora, foi uma compra arriscada. Devemos sempre procurar conhecer outros autores, para não corrermos o risco de perder boas leituras. Risco sempre de evitar.

Esta obra é um livrinho, nem dá para uma tarde de leitura. No entanto, ler um livro sem interrupção chega a ser muito satisfatório. Há um prazer quase sensual em terminar um livro e depois arrumá-lo na estante, é uma sensação de plenitude. Enfim, chega dos meus excursos sobre a leitura.

Felizes anos de castigo correspondem à designação dos anos que a protagonista/narradora passou num dos colégios internos. A história deste livro conta especificamente os anos num desses colégios, com a idade de catorze anos. Percebe-se como a convivência entre as meninas do colégio, oriundas de vários pontos do globo estava profundamente hierarquizada, como todos os movimentos assentavam em táticas para se conquistar um lugar, se mais ou menos popular, mostrar-se mais ou menos acessível, conseguir fazer amizade com quem se escolheu. Esse esforço constante, podia levar a que as jovens emulassem uma das escolhidas como caminho para a afirmação.

É uma história tecida de fascínio, sedução, risco e muita, muita ambiguidade. 

O livro está escrito de forma quase seca, fria, distante, como se filtrada por um tecido fino, uma espécie de sfumatto literário. Faltam-nos algumas palavras, enerva que as coisas não sejam dissecdadas, fiquem numa espécie de limbo que resulta de uma "filmagem", que não nos dá as explicações que sentimos necessitar. Acresce que todo o livro é perpassado por uma forte tensão: social? emocional? sexual?.

Outra imagem que me ficou do livro é como se houvesse na história um jogo de espelhos: a narradora cede ao fascínio, quase obsessão por Fréderique, mas exerce sobre nós o mesmo fascíno. ela tenta compreender a essência, o je ne sais quoi,  da colega. O leitor tenta o mesmo com a protagonista, que nos seduz, que nos escapa, a quem queremos também conhecer e compreender, talvez agradar.

"infância vetusta"; "alegria pela dor", "morre quem não existe" são núcleos semânticos que remetem para uma espécie de prenúncio de morte, de podridão, de dor que perpassa pelas páginas do livro. A frieza das suas frases é reflexo da frieza, da distância entre estas jovens e as suas famílias, cujas ordens vêm de longe, escritas, palavras não articuladas. É profundamente nostálgico este livro.

Fica, da leitura, uma espécie de perplexidade, de incompreensão. Fez-me lembrar os contos de Hélia Correia, há qualquer coisa de maligno, de selvático, de contido, que não chega a libertar-se, mas que fermenta sob aquilo que se escolhe desvelar. Leitura curiosa, poderosa, desafiadora. Literatura, portanto.

 

 

06
Mai24

Um toque no coração II

livrosparaadiarofimdomundo

Há tempos, a Sofia procurou-nos para estagiar connosco. 

Aceitamos, normalmente aceitamos quem nos porcura para completar a sua formação. É preciso estar aos serviço da comunidade e contribuir para a formação e o aumento das qualificações da nossa população.

Como estagiária foi marcante a sua delicadeza e a sua gentileza. Foi marcante também a disposição para trabalhar com as crianças.

Quando o estágio terminou, foi despedir-se de mim, no mesmo tom.

Às vezes, cruzamo-nos com pessoas a quem apetece abraçar, a quem apetece manter por perto, tal é a sua aura de gentileza.

A partir daí, em momentos especiais, recebo uma mensagem da Sofia, pelo Natal, por outro pretexto qualquer. São mensagens simples, mas trazem com elas uma brisa de carinho, de reconforto, de calor. Deixam em mim uma forte impressão de gratidão. Saber que, algures, no tempo e no espaço, alguém, desinteressadamente, tem de mim uma memória que me faz merecer esses gestos de humanismo, de uma grandeza invejável, pois quem se dá ssim aos outros é uma inspiração para quem tem o privilégio de merecer essas formas de amor.

Ontem, dia da Mãe, recebi mais uma mensagem da Sofia, a desejar-me um bom dia da Mãe. Mais um gesto bonito, gratuito, que me mereceu este texto. Como testemunho de que podemos manter acesa a fé nas pessoas, os maus não vencem sempre, fazem é mais barulho; como forma de agradecimento, porque me sinto muito humilde perante este gesto; como homenagem à Sofia, por ser especial e espalhar o bem sem esperar nada em troca.

Este texto é para si, Sofia.

04
Mai24

#7/2024 - Mentiras de Mulher, Ludmila Ulitskaya: a arte de sobreviver

livrosparaadiarofimdomundo

Mentiras de Mulher

Cavalo de Ferro

155 páginas

UlitsKaya é uma escritora de que tenho lido os volumes traduzidos em Portugal. É uma autora com grande domínio da escrita, como se os seus livros fossem sempre resultado de uma rememoração, um discurso contido, mas forte, limpo, mas sublime, denso, mas humano. 

Neste caso, o livro integra várias narrativas, todas protagonizadas por mulheres, unidas pela mesma personagem, Génia, intelecutal russa, que se movimenta em diferentes cenários, de cujo percurso nos vamos apercebendo pelas informações disseminadas pelos diferentes capítulos.

Génia é testemunha e confidente de vários relatos e episódios vividos por outras mulheres, de origens, idades e profissões diferentes. Em comum, têm histórias que contêm algo de fantástico, que as eleva acima dos outros, e que começam sempre por fascinar, comover, espantar, indignar Génia. Inevitavelmente, essas histórias vêm todas a revelar-se falsas, são mentiras de mulher. Lutos, adultérios, ilusões e desilusões, esses construtos são, na verdade, estratégias de superação e de sobrevivência a que cada uma delas recorre para suportar as contingências de uma existência, anódina, indiferenciada, triste. 

Esta leitura envolve-nos, fascina-nos, intriga-nos, como sempre em Ulitskaya. É um tecer da escrita moroso, amoroso, cuidado, quase hipnótico. O tom nunca é grandiloquente, é como se esta escrita fossem relatos partilhados em surdina, mais assentes na reflexão sobre, do que nos saltos imprevistos das peripécias. Do conjunto destas mentiras, vão emergindo as indiossincrasias da sociedade russa após a queda do regime soviético.

É leitura de se recomendar, para quem quer dos livros mais do que uma história bem engrenada e procura o pulsar da grande literatura, da escrita primorosa, que nos enreda mais do que a história. 

 

 

 

25
Fev24

Às vezes também vou ao cinema: A Zona de Interesse

livrosparaadiarofimdomundo

 

Em minha opinião, estamos a ter uma excelente época de cinema. Efetivamente, tenho visto filmes de excelência, nomeadamente o extraordinário Os Excluídos, mas não é sobre esse que venho escrever hoje.

Um dos filmes pelos quais tinha mais curiosidade era precisamente A Zona de Interesse, adaptação do romance homónimo de Martin Amis, e essa atração vinha precisamente da fotografia, a partir dos curtos trailers que iam surgindo nas redes sociais. Assim, pus-me a caminho e lá fui ver o filme e em boa hora o fiz, já que, para mim, foi uma experiência marcante, muito marcante.

O filme acompanha a vida familiar de Rudolph Hoss e da sua esposa Hedwig, assim como dos filhos, cinco, entre rapazes e raparigas, numa casa onde impera a ordem, a harmonia, a arrumação e um bem-estar por demais óbvio. A residência da família está circundada por um jardim muito bem cuidado, com imensa variedade de flores, recantos idílicos, de um bom gosto extremo, equilibrado, com piscina, relva de um verde luxuriante. A vida familiar decorre numa tranquilidade que deve ser o sonho de qualquer um: marido e esposa respeitam-se, não há discussões, as crianças são obedientes, frequentam a escola, as serviçais da casa mantêm tudo em ordem. Em tudo aquela família e aquele espaço são perfeitos.

Acontece que Rudolph Hoss é o comandante que gere o campo de extermínio de Auschwitz, acontece que a casa de família vive paredes meias com os muros do campo, aliás, o dedicado comandante sai todos os dias de manhã para o seu emprego, bastando-lhe atravessar uma pequena cancela antes de penetrar no campo. Acontece que os muros que circundam o jardim são os muros do campo, ainda não totalmente cobertos pelas plantas e arbustos cultivados por Hedwig, a fim de ocultar a falta de beleza dos mesmos. Acontece ainda que o quotidiano da família é pontuado pelos ruídos que chegam do campo, tiros, vozes, ordens gritadas, comboios que chegam e que partem.

O filme é avassalador, é esmagador. Não há uma única imagem sobre as atrocidades e o horror de Auschwitz, mas esse horror é omnipresente, ainda que conscientemente ignorado por todos os elementos da família. Mas o horror maior é mesmo a banalidade do mal, tal como definido por Hanna Arendt, a indiferença total, o cinismo das palavras, o oportunismo com que os nazis (con)viveram com o sofrimento de milhares de pessoas, focados nos seus interesses. Hoss não é mais do que um funcionário que se preocupa com as suas metas e objetivos, em progredir na carreira, naquela carreira, preocupado em resolver os desafios que novas "encomendas" lhe trazem, como outro qualquer diretor de empresa. Hoss é muito competente no que faz, é uma referência, e o filme revela-nos o quanto, já no seu final, sempre dessa forma, quase como o teatro de Brecht, apenas nos mostra, o resto é connosco. Aqui e ali, se estivermos muito atentos, vamos percebendo, vamos lendo os sinais da distopia, mas são subtilezas apenas.

Em termos cinematográficos, do pouco que entendo, a fotografia, a banda sonora, os planos de filmagem, o desempenho dos atores, conjugam-se no mesmo objetivo, é como se o realizador mostrasse pelas suas personagens a mesma indiferença que perpassa por todas as cenas, com pouquíssimos, grandes planos, que, às tantas, quase nos fazem falta, queremos disitnguir os rostos, queremos contemplá-los para, nessa proximidade, os podermos odiar, mas tal não é possível. Tudo isso contribui para a forte impressão que o filme causa, em especial, como se mantivesse o espectador também à distância. 

É um filme para se ver no grande ecrã, na sala escura, a sós com as cenas. É, dentre os muitos bons filmes que vi este ano, o melhor de todos eles. Para mim, leiga nestas coisas, uma verdadeira obra-prima e tão forte, que me custou a levantar da cadeira quando terminou. Ficou-me esta reflexão, nestes tempos pouco encorajadores, a arte vai-se revelando uma forma de intervenção, de despertar para a proximidade do mal, para a emergência da empatia, e isso é uma coisa boa.

Vale a pena ver.

Fica a vontade de ler também o livro.

13
Fev24

#13/2024 - pequenas coisas como estas, Claire Keegan: manifesto contra a indiferença

livrosparaadiarofimdomundo

Pequenas Coisas como Estas

Relógio d'Água

81 páginas

Apetece-me só deixar a imagem da capa, a indicação das páginas, que não desencorajam ninguém, e dizer para se aventurarem na leitura deste pequeno/enorme livro, para se verem surpreendidos como eu.

Mas a verdade é que não consigo ficar calada, tenho sempre que dizer alguma coisa: por exemplo, leiam este livro, mesmo que seja o único que vão ler na vida. Vale cada palavra, cada linha, cada pequeno capítulo.

A história apresenta-nos (como ponta do iceberg) o dia a dia de Bill Furlong, comerciante de carvão, assoberbado com trabalho nos dias que antecedem o Natal, agudizados pelo clima frio da Irlanda. Bill é pai de família, tem cinco filhas e vive para as educar e para lhes garantir um futuro mais ou menos tranquilo numa Irlanda sempre marcada pelo estigma da pobreza. Nesses dias, Bill dá por si a questionar a sua vida, a ansiar por qualquer coisa imprecisa, a recordar a sua infância, a forma como a mãe teve a sorte de se ver protegida pela patroa, quando se soube grávida em solteira. A Bill nada faltou, apenas um puzzle que ele tinha desejado num dos Natais da infância. Como muitas outras crianças nessa época, fruto de circunstâncias idênticas, Bill nunca conheceu o pai. Este dado da biografia de Bill é fundamental para perceber a mensagem da história.

Sobranceiro à vila, situa-se o convento, paredes meias com o colégio onde estudam as filhas de Bill, igualmente administrado pelas freiras. Bill é o fornecedor de carvão do convento.

Mais não digo, porque não posso, nem quero, estragar-vos o prazer da leitura e de estabelecerem os nexos da história. O que é verdadeiramente impressionante neste livro é a forma como a autora sem falar da atrocidade de que se propõe tratar, consegue, com breves pinceladas, dar-nos conta da desumanidade, da hipocrisia, da crueldade, da indiferença que entornam o assunto que está ali a ser tratado. O que é aqui equacionado é como é possível, paredes meias com o horror, permanecer indiferente, fazer-se de conta que não se sabe, ceder à imposição do silêncio, enquanto seguimos a nossa vida tranquilamente, sem levantarmos ondas. Não há nesta observação o mínimo juízo de valor. É mais uma interrogação, é mais o desejo de não nos vermos assim testados e interpelados. É esse o motivo do livro.

Por outro lado, cada página traz-nos a imagem da irlanda, dos seus hábitos e tradições. É como se fôssemos transportados até lá, sorvessemos o mesmo chá a propósito de tudo e de nada, entre outros apontamentos. É, por fim, a clareza da linguagem, sem equívocos, sem hermetismos, na sua desconcertante simplicidade, de quem se limita a mostar, a apontar, deixando-nos a responsabilidade de trilharmos o caminho.

Deixo como última recomendação, a mais importante de todas, a leitura da nota final e garantir-vos que não há arrependimento possível por virmos a este livro, mais um que me inspirou a vontade de ser melhor do que aquilo que sou, que me desafiou a superar-me, a centrar-me na bondade, na coragem, na indignação.

Leiam, vão ver que vale a pena.

 

05
Fev24

#8/2024 - Certas Raízes, Hélia Correia: contos intrigantes.

livrosparaadiarofimdomundo

Certas Raízes

Relógio D'Água

97 páginas

Este volume de Hélia Correia reúne 7 contos, narrativas breves carregadas de sentido, profundas, complexas e motivadoras de perpelxidade, quando não perturbação.

A autora escreve muito bem, revela um exímio domínio da palavra e da narrativa, doseando inteligentemente a informação que revela, deixando vastos espaços para a intepretação do leitor. É, por isso, uma leitura que nos deixa quase inquietos, mas também muito rendidas à sua forma de contar. Efetivamente, há aqui uma maturidade que a longa experiência de Hélia, em especial, nos contos, justifica e explica.

Destaco o último conto do volume, precisamente o que comunga do mesmo título do livro e qur remete para a persisitência de certas raízes na naturez humana, que nos mantêm próximos da ferocidade animal, em especial quando nos agregamos em bandos (alcateias), quando protegidos pelo grupo a que pertencemos somos capazes de atrocidades, talvez porque destituídos de individualidade, talvez, porque não é concreto o nosso papel, talvez porque nso limitemos a participar e a nossa presença legitime o crime comum. 

Outros contos remtem ainda para a procura da beleza eterna, para a construção de um copro perfeito, que se vai/nos vai fragilizando, que se torna obsessão e nos afasta da realidade. Denuncia-se através dessa perseguição certas pulsões que nso acometem no presente, que nos esvaziam pouco a pouco da nossa humanidade, já que, compulsivamente cedemos à artificialização do que somos, da idade, do rosto, do corpo, da alma, por fim.

Se fosse possível encontrar um ponto comum entre todos os contos, diria que a desumanização seria uma dessas ideias que são transversais ao livro, o que lhe confere o seu pendor satírico. É uma denúnica, é uma escrita reveladora dos nossos equívocos.

Por fim, destaco a perfeição da escrita de Hélia Correia, sóbria, inteligente, erudita, fluida e inquietante.

Recomendo, pois.

01
Fev24

Um toque no coração

livrosparaadiarofimdomundo

No sábado, assistiu a uma palestra, onde fui moderadora de uma conversa à volta de um livro, mas não é disso que me traz aqui.

À saída da palestra, entre cumprimentos, aproximou-se de mim e perguntou-me se eu era quem eu sou. Respondi-lhe que sim, atenciosamente. 

Respeitosamente, pediu se podia marcar uma reunião comigo, durante a semana, porque queria muito fazer uma proposta à pessoa que eu sou no cargo que desempenho. Voltei a dizer-lhe que sim. Pedi-lhe que telefonasse, na segunda-feira para verificar a agenda. 

Telefonou. Sempre no mesmo registo respeitoso, atencioso, cavalheiresco quase. É um senhor de idade, tímido, inseguro, humilde, revelando uma alma que me comoveu profundamente.

Hoje reunimos então na escola. Assegurou-me que não me tomaria muito tempo, mas que tinha uma ideia para me apresentar. Pu-lo à vontade e preparei-me para o escutar. Disse-me que gostava muito de história, que valorizava muito a preservação dos monumentos e outras marcas da nossa história comum. Que tinha visto dois programas da rubrica "Visita Guiada", que lhe tinham parecido especialmente interessantes: um dizia respeito a Sintra e outro à Citânia de Briteiros, em Guimarães. Trazia consigo um quadrado de papel, menos que A6, onde tinha registado o nome dos sítios de interesse histórico, a cidade onde se situava cada um deles e um contacto telefónico. A sua proposta era que a escola levasse lá os alunos em visita de estudo, porque achou que seria importante para eles conhecerem aquele património. Pediu licença ainda para me apresentar outra proposta. Que é membro de uma associação e que o preocupa o facto de as crianças passarem tanto tempo ao telefone, por isso sugeria também que as crianças pudessem frequentar a sua associação, que participassem numa ssembleia para perceberem como funciona. Dei-lhe autorização para entrar em contacto com a professora da escoal amis perto e de propor essa articulação.

Hoje, no final de um dia muito intenso, chegada a casa, foi esta reunião que me veio insistentemente à lembrança, daí ter de escrever sobre ela. Primeiro, porque me dói de tanto me comover, que generosidade, que proatividade, que bondade neste gesto, que forma exemplar de valorizar a escola e, ao memso tempo, a nossa identidade, que forma de cidadania ativa e participativa. Que coragem também... Que gentileza. Ficou em mim o insólito deste encontro, que me deixou perplexamente feliz, mas, sobretudo tão, mas tão sensibilizada. Se fosse possível, voltaria à sala onde reunimos e abraçaria o senhor, na sua fragilidade, timidez e imensa delicadeza e bondade.

Sinto-me tão grata por este toque no coração, que me dói, sem que eu saiba muito bem porquê. 

 

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