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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

17
Mar25

#2/2025 - Eu canto e a Montanha Dança, Irene Solà

livrosparaadiarofimdomundo

Eu Canto e a Montanha Dança

192 páginas

Cavalo de Ferro

Não sei se ler é o melhor remédio, sei que é um bom remédio. Ler é tudo o que já se disse e um pouco mais que cada um de nós acrescenta. Ler, no caso deste Eu canto e a montanha dança,  é uma experiência estética que agrega beleza e poesia, como se fossem coisas diferentes. Ler é flutuar fora do tempo e do espaço e ao mesmo tempo num tempo e num espaço que é recriado pelas palavras que fluem, que preenchem a nossa perceção. Ler pode ser e é uma experiência intensamente sensorial.

Se houver alguém com paciência para ler estas palavras, não será para encontrar aqui a sinopse de um livro. Decerto procura um motivo para ler e, em particular, para ler este livro. Muito brevemente, o enquadramento da narrativa - atenção não da ação, não das palavras, porque tudo neste livro é complexo e tecido de várias camadas, daí que fuja de expressões redutoras, procuro uma forma abrangente de dizer - são os Pirinéus, eles também personagem.

O que torna este livro objeto a ser lido é, em primeira instância, a forma como memória e identidade nele se fundem: tudo é espaço de convergência - as pessoas, os animais, a natureza, as plantas, as nuvens, a chuva e o raio, os fantasmas, os seres feéricos e mágicos, míticos e imaginários. Tudo se revolve numa espiral que se refaz, não há acaso, não há exceção, não há individualidade, é uma longa e inexorável cadeia que tudo une e interliga.

Os lugares aqui descritos são aldeias recônditas, simultaneamente antiquíssimas e de hoje, nelas vivem homens e mulheres que têm o domínio dos silêncios e da distância, mais de ontem do que amanhã. Pendularmente situados entre uma espécie de panteísmo que é de inspiração antropomórfica. Essa característica contribui para a polifonia do livro, todos os seres são sujeito de narrar, todos contribuem para a composição final, todos convergem.

A composição do romance convoca e desafia o leitor, que não pode ser passivo, tem de ter atenção plena, tem de recompor, reconstruir, reestabelecer a linearidade que a narrativa fragmentou, é agente, é co-narrador.

É um romance belíssimo, no qual se cria uma atmosfera de lenda e de saga, de fantástico e de maravilhoso, de linguagem que narra poetizando o objeto contado. É mesmo muito bonito, como os olhos do corço, é arguto como as nuvens, poético como os montanheses que não escrevem as suas poesias, antes as dizem, misterioso como as mulheres de água, intencional, como as bruxas, frágil como as suas personagens, marcado pela memória como tudo e todos. Todos estes elementos ali constam, pelo meio é possível reconhecer uma história, mas esta é parte e não fim.

04
Mar25

#1/2024 - Ainda estou aqui, Marcelo Rubens Paiva: da importância da memória

livrosparaadiarofimdomundo

Ainda Estou Aqui

D. Quixote

270 páginas

Começava a falar-se com insistência sobre o sucesso do filme, realizado por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, homónimo deste livro, quando me apercebi que a fita era baseada num livro. Ora havendo um livro, diz a ciência - a partir de estudos realizados por leitores que são cinéfilos -, que o livro é quase sempre melhor que o filme. Daí que comecei pelo livro. Ao dia de hoje, já depois do Oscar para melhor filme estrangeiro, ainda não vi o filme, estará para breve, mas li, isso sim o livro. Desfaço já as dúvidas: gostei muito. Em termos de significado está ali a nível do Somos o Esquecimento que seremos. Aliás uma análise comparativa dos dois daria um estudo muito interessante. Um dia destes, curiosamente, apercebi-me que Carlos Magno, o apresentou como sugestão de leitura no momento do seu comentário semanal na CNN. E bem, e bem, a recomendação é pertinente.

Ainda estou aqui é um livro de memórias sobre a memória de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice Paiva e de Rubens Paiva. Glosando várias abordagens sobre a memória, a que conservamos, a que perdemos, as que devemos preservar e resgatar, a propósito da doença da mãe, que tem Alzheimer, de cujas brumas lhe é cada vez mais difícil voltar. Com esse  mote, Marcelo Rubens Paiva vai resgatar a luta da mãe contra a ditadura e contra outras formas de opessão, assim como a história da sua família, para sempre condicionada pelos acontecimentos de 1971, em resultado dos quais o pai foi preso, durante os tempos da ditadura no Brasil, vindo a morrer na prisão, sem que a família tivesse conhecimento do seu destino, tendo de esperar longos anos até que a versão oficial fosse finalmente desmentida e que a verdade emergisse para que a família fizesse enfim o luto, para que eunice pudesse enfim ver esclarecido o seu estatuto civil.

Por um lado, temos essa imaersão nos tempos da ditadura e somos confrontados com os desmandos do autoritarismo, com a crueldade de um regime que, obviamente estava mais preocupado com a sua sobrevivência do que com a segurança dos cidadãos. Mais uma vez, a literatura recupera, expõe, resgata do esquecimento episódios que nunca deviam ser esbatidos para que não corramos o risco de ver a história repetir-se... e, no entanto, eis a história a rir-se na nossa acara, a repetir-se e a reinventar-se. É um libelo a favor da cidadania, da liberdade, da justiça e da humanidade.

Por outro lado, temos a figura de Eunice Paiva, quando casada, esposa a caber dentro de um certo modelo de mulher, mãe de cinco filhos, sem profissão. Depois da sua travessia pelo horror de se ver presa, assim como a sua filha mais velha, no mesmo dia em que o marido foi preso, vindo a morrer em resultado da tortura, Eunice empreende um longo caminho de resistência, que passa também pela sua reinvenção enquanto mulher e quanto ao seu papel na sociedade. Volta a estudar, torna-se advogada, defendo os direitos dos indígenas e procura a verdade sobre o que aconteceu a Rubens Paiva de maneira insistente e persistente até, muitos anos mais tarde, a conseguir e... uma certidão de óbito.

Eunice personifica a resistência, assertiva, digna, orgulhosa e convicta. É uma resistência sem concessões, que recusa a vitimização, cujo expoente máximo - já confundindo o livro com as muitas imagens do filme, com a fotografia que é capa do livro e cartaz do filme - é a célebre frase "Vamos sorrir. Sorriam", pronunciada por Eunice, quando a família é fotografada para uma revista, já na ausência de Rubens Paiva, recusando-se a ceder perante os desvarias de uma ordem que vinga pela força. O livro dá conta da sua coragem e dignidade públicas, em oposição ao sofrimento e às lágrimas privadas.

Vale a pena ler, porque precisamos de conhecer para avaliar, de lembrar para evitar, de nos comovermos para podermos recusar, de nos mantermos alerta. São estranhos os tempos que vivemos, talvez devamos sorrir também como forma de resistir.

Vou agora ver o filme e depois hei de escrever sobre ele.

13
Out24

#44/2024 - Um dia na vida de Abed Salama, Nathan Trall - anatomia de uma tragédia em Jerusalém

livrosparaadiarofimdomundo

Um Dia na Vida de Abed Salama

Livros Zigurate

208 páginas

Este é um livro de não ficção, escrito por Nathan Trall, jornalista, analista e ensaísta norte-americano, que vive em Jerusalém, que conhece bem o conflito que envolve Israelistas e Palestinianos. O autor dirigiu durante alguns anos o Projeto Árabe-Israelita do International Cirisis Group, organização independente dedicada à prevenção de conflitos.

No contexto atual que vivemos, este livro importa, para nos ajudar a compreender aquilo que todos os dias se nos revela incompreensível. Como é que este conflito vai crescendo ano após ano, sem qualquer esperança de fim à vista. Como é possível que, após tanto desperdício de vidas, de ambos os lados, ninguém tenha a coragem de trilhar o caminho da paz e da coexistência, fazendo valer as leis internacionais, o direito, os direitos humanos?

Com essa pergunta no espírito, mergulhamos na leitura do relato, que se constrói com o entrelaçar de histórias individuais face à tragédica coletiva.O ponto de partida é um acidente que envolve um camião e um autocarro de crianças em idade pré-escolar, que iriam participar numa visita de estudo. O acidente acontece do lado palestiniano, as crianças são palestinianas, na estrada de Jaba. Uma das crianças é Milad, filho de Abed Salama. como não gosto de revelar o conteúdo do livro, fico por aqui... deixando só esta nota, efetivamente há dias na nossa vida que a mudam para sempre, que deixam cair sobre nós todo o peso do contexto em que nos movemos.

O autor, partindo do acidente, desvenda a vida de várias pessoas que, direta ou indiretamente, se relacionam com o episódio. É o motorista do autocarro, que nem queria fazer aquele trabalhao, cuja vida ficará para sempre assombrada e condicionada pelo acidente; é a médica que socorre na primeira linha as crianças, é o militar israelita que concebeu e coordenou as operações de construção dos vários muros que foram isolando israelitas e palestinianos, é o pai de Milad, Abed Salama, que, por ter integrado a Fatah, tem um cartão verde, que lhe veda a circulação no lado israelita, é a mãe que, perdendo um filho no acidente, se vê acusada e ostracizada pela família do marido, perdendo dessa forma toda a estrutura da sua vida pessoal, é um cidadão anónimo que ajuda a retirar as crianças do autocarro e que se deixa dominar pela revolta de as ver morrer sem que nenhum socorro surja, ainda que ali perto haja posto militares e de bombeiros israelitas, são os diferentes líderes palestinianos e israelittas que conseguem cooperar entre si, embora nem sempre a vida dos indefesos esteja na ordem das suas prioridades. Desta forma, este dia na vida de Abed Salama permite-nos revisitar as implicações de um conflito sem fim à vista, mas que vai pondo fim à vida de muitos inocentes, à esperança de várias gerações, roubando futuro a muitas crianças. 

À imagem das tragédias clássicas, o dia da vida de Abed Salama tem vintee quatro horas, mas nele cabem anos e anos de conflitos, guerra, morte e destruição que os habitantes daquela zona carregam consigo. Evidenciando mais o lado palestiniano, é-nos devolvido um retrato de um povo sitiado e acossado, deixando-nos para sempre a pergunta incómoda: como é que se pode viver assim, ainda que seja possível perceber que há escolas, comércio, negócios, no território da Palestina. Mas a vida está condicionada por uma série de obstáculos: físicos, judiciais, políticos, religiosos...  

Tratando-se de uma ensaio jornalístico a escrita é objetiva, o texto existe para dar conta, para mostrar, à maneira de Brecht, ao laitor cabe analisar, interpretar e, a partir da informação, tirar as suas conclusões. É um livro que nos leva a querer conhecer, perceber, dissecar como é que a História nos trouxe até aqui, porque é que todos os caminhso parecem dar em becos sem saída, daí que tenham investigado para perceber o que é a Fatah, o Hamas, o sionismo, um judeu asquenaze, a evolução da ocupação israelita, como foram e são criados os colonatos, como se organiza a vida do lado da Palestina.

Não é uma leitura para ficarmos de bem com a vida, mas é uma leitura que importa e não podemos ficar só pelo que é fácil e nos aliena, às vezes temos de tomar uma dose de realidade.

06
Out24

#42/2024 - O amante do vulcão, Susan Sontag: uma erupação lentamente efusiva

livrosparaadiarofimdomundo

O Amante do Vulcão

Quetzal

477 páginas

Tem sido isto, ler mais, muito mais do que escrever... o que vai esvaziando o sonho. Perante tanta obra prima, que lugar haverá para o que eu possa dizer?

Foi o primeiro livro que li desta autora, malhas da Hora H da Feira do Livro, em que há livros a quem damos oportunidade que, pelo preço, talvez não dêssemos. Graças aos deuses da descoberta. Se foi o primeiro... não vai ser o último, decerto.

O amante do vulcão é Sir William Hamilton, diplomata inglês em Nápoles, durante o período da ascensão de Napoleão. O período histórico é o contexto, as circunstâncias, nas quais as personagens se vão movimentar, elas sim protagonistas. O tema do livro não é a história, o tema do livros são as pessoas que viveram a história. Hamilton, para além de diplomata, é um colecionador, um vulcanólogo, vivendo sob o fascínio que o Vesúvio exerce sobre ele, na sua violência e imprevisibilidade. Aliás, o Vesúvio é leitmotiv  no livro, muitas vezes metáfora de metáforas. Apresentado assim, o livro até pode parecer maçador, mas a esta linha narrativa, dois aspetos se juntam que fazem com que, o ponto de partida, corresponda  a uma espécie de erupção.

A história de Hamilton poderia ser a de mais um diplomata, burocrata, interessado em arqueologia, como tantos outros, levando para Inglaterra inúmeros artefactos, como tantos outros, aproveitando-se ou não da ignorância dos locais. Mas este homem terá ficado para sempre ligado ao triângulo amoroso de que fez parte com a sua segunda esposa, Emma Hamilton, e Lord Nelson, o temerário herói inglês, vencedor de Trafalgar. Emma terá sido uma mulher fascinante na sua época, pela sua beleza e pelo seu talento, nomeadamente para recriar quadros vivos, representando muitas das heroínas históricas e mitológicas, musa inspiradora de muitos artistas. Por ela círam de amores William Hamiltonm, que com ela casou, depois de esta ter sido amante do sobrinho, causando grande escândalo na sociedade da época, mas também o herói inglês, Lord Nelson. 

Embora esta história, tantas vezes repetida em diferentes momentos da história: homem mais velho casa com mulher muito mais jovem, homem  mais velho é enganado pela esposa, para além do interesse despertado por se tratarem de personagens históricas, ganha contornos muito próprios por causa da voz narrativa, que não se coíbe de intervir, de comentar, de estabelecer paralelismos entre o passado e o presente, perspetivando diferentes momentos históricos.

A narrativa é a verdeira pérola deste livro, esta escrita intencional que Sontag assume de pleno direito, comentando, observando, refletindo, desvendado, levantando hipóteses, contaminando com o seu feminismo inteligente a forma como conta a história. Dessa forma, o livro vai-se renovando a si mesmo, até culminar nos últimos capítulos em que esta voz demiúrgica cede o lugar à voz e fala das suas personagens...

Talvez tenha dito demais, talvez haja aqui algum spoiler, mas não se preocupem o livro tem tanto para dar, ainda há margem para surpresas... procurem a mulher portuguesa, ela também merecedora de ser personagem de um romance; a voz de Emma, a voz de Hamilton. Esta obra já está ali num lugar especial da estante e do meu coração de livros.

18
Set24

#35/2020 - Tomás Nevinson, Javier Marías: caleidoscópio do bem e do mal.

livrosparaadiarofimdomundo

Tomás Nevinson

Alfaguara

656 páginas

Foi agosto outra vez e repeti um livro de Javier Marías, desta vez, Tomás Nevinson, que dialoga com Berta Isla, que foi o meu agosto de 2023. Desta forma, Javier Marías vai-se consolidando como escritor de culto. Só por causa das coisas, logo de seguida li Coração Tão branco, mas vamos com calma que não foi desse que vim aqui falar.

Comecemos pela minha introdução à obra de Marías. O primeiro livro dele que me veio parar às mãos foi Enamoramentos, que me enfadou, de maneiras que não terminei a leitura. Senti uma espécie de Marías exclusão, pois era um escritor que via sempre muito bem cotado e a mim nada... Depois li Berta Isla e fiquei cheia de vontade de ler Tomás Nevinson,  e agora eis-me aqui rendida a este escritor: complexo, intrigante, profundo, inquiridor.

Tomás Nevinson é o marido de Berta Isla, que entra para os serviços secretos britânicos por circunstâncias estranhas. Dada a sua profissão, ele é e não é, está e não está, existe e não existe, faz e não faz, como tão bem o define o seu chefe Bertram Truppa. Em Berta Isla, Tomás é quase personagem secundária, como se o escritor mimetizasse no romance o secretismo da sua profissão. O leitor sabe o que Tomás faz, mas isso é traçado a pinceladas vastas e genéricas, nunca uma missão sua é devassada, só a sua intermitência na vida de Berta. O que é trazido à luz é o impacto dessa intermitência na vida de Berta, essa descontinuidade que a desagrega e a vai indefinindo na sua condição de mulher de Tomás.

Neste volume, Tomás é o protagonista, é Berta que é deixada na sombra. Regressado à ação, mais uma vez devido a Bertram Truppa, Tomás aceita uma missão, que lhe devolve algum sentido à existência. No entanto, o início do livro é decisivo para a tese que se vem a enunciar: havendo a possibilidade de se ter assassinado Hitler e, dessa forma, impedindo todo o mal que conhecemos, esse ato é legítimo ou ilegítmo, ou como conclui uma das personagens, estando o nosso destino traçado há alguma forma de lhe escaparmos? Esta questão, podemos decidir quem vive e quem morre e em nome de que valores, estrutura toda a narrativa. Tomás terá de decidir para levar a bom porto essa missão, ter esse poder enorme, legitimado até, sobre se uma mulher pode viver ou se deve morrer. 

Para além desta equação que estrutura a história, a qualidade do livro está definitivamente na escrita. Marías é um escritor-leitor, percebemos que muita da sua cultura e erudição são matérias primas que cimentam a escrita. Todo o livro é diálogo, exegese, questionamento sobre a ambiguidade em que nos movemos, quem está do lado do bem e do lado do mal, quem tem legitimidade e quem não a tem, sendo os serviços secretos, ao serviço de quem efetivamente estão, e se em lugar de serviços secretos a bem de todos, forem, antes, interesses secretos, a bem de gente obscura? Essa nota de ambiguidade mantém-se em múltiplos aspetos do livro, até na cidade do Noroeste de Espanha, recôndita, provinciana, para a qual Nevinson se muda, e que nos interrogamos continuamente acerca da sua localização, será Ourense, será Lugo, será outra qualquer, ou um pouco de todas elas. 

Enfim, será difícil despertar o interesse para a leitura, quando se escrevem textos longos, de maneiras que me fico por aqui, talvez incompleta, talvez ambígua, mas rendida a Javier Marías, que se vai agigantando nos meus gostos de leitura. Vale a pena ler.

 

04
Jul24

#11/2024 - Apneia, Tânia Ganho:

livrosparaadiarofimdomundo

Apneia

Casa das Letras

690 páginas

Às vezes, apetece-nos mergulhar num livro de cabeça, abandonarmo-nos a ele e deixar que essa leitura nos absorva, enquanto durar. Foi nesse estado de espírito que peguei neste livro. Recomendadíssimo por uma amiga, que partilha comigo muitas leituras e um gosto muito semelhante, sabia, à partida, que não me iria desiludir. O livro é extenso e prometia boas horas de leitura. Hoje, à distância de uma semana, penso nessa amiga, a entrar no gabinete e a dizer-me "tens de ler este livro." Ela sabia o que estava a dizer.

Não resistindo a um trocadilho fácil, diria que lemos este livro em apneia, tal a intensidade das suas páginas. É quase uma armadilha, o leitor chega ali, desprevenido, lê dois ou três capítulos (os capítulos são curtos) e é, literalmente, fisgado e arrastado para a narrativa. 

O livro conta a história de Adriana que abandona o marido Alessandro, levando consigo o filho de cinco anos e é partir dessa decisão que a narrativa ganha fôlego. Em minha opinião, todo o livro evidencia uma enorme inteligência na sua composição, a estrutura mimetiza a mensagem. As primeiras páginas são ainda evasivas, incertas, ainda não conhecemos Adriana, aquele casamento parece ter alguns porblemas, alguma instabilidade, mas pouco percetível, porque a verdade é que os danos são subtilmente inflingidos, de maneira insidiosa, minando a integridade psicológica de Adriana. É ao longo da leitura que nos é revelado o alcance do mal. Alessandro é metódicamente cruel, meticuloso no mal que exerce e Adriana é remetida à metáfora da rã mergulhada na água que vai aquecendo até a aniquilar, porque a habituação a impede de reagir aos sinais de alarme. É este o tipo de violência de que Adriana é objeto. Outro aspeto a sublinhar é, pegando num conceito da teoria literária, o facto de Adriana ser verdadeiramente uma personagem modelada, que se transforma e se transfigura num processo que começa no instante em que abandona o seu casamento. Há uma trajetória demorada que leva a personagem de uma espécie de passividade e apatia à mulher que bate o pé, diz não, enfrenta e confronta, recorre a todos os meios para se salvar a si e ao filho do polvo maldoso que são as ações despudoradas do seu agressor, porque, sem levantar um dedo, o marido é um predador, um manipulador, uma aranha que tece a teia onde os incautos se deixam enredar. O ritmo da narrativa é, por isso, muito mais rápido no final do livro, precipitando os acontecimentos. A construção das três personagens, pai, mãe e filho, é uma das chaves da qualidade deste livro, são todos inesquecíveis. O embate de Adriana com uma justiça lenta, enviesada por narrativas contraditórias, quase preguiçosa, negligente ou excessivamente cautelosa, revela uma dimensão escondida de todas as questões ligadas à violência doméstica e às situações de todo e qualquer abuso, terreno minado onde ninguém parece querer aventurar-se, arriscar, procurar a verdade. A extensão do livro espelha estes meandros de lentos avanços e demasiados recusos, de profunda impotência, solidão e revolta das vítimas, condenadas inexoravalmente à dúvida, à descrença, a rótulos que comprometem a fiabilidade das suas narrativas. É kafkiano! Adriana e o filho são fustigados por uma inércia que parece favorecer sempre o agressor. 

Dizia a minha amiga: "É um livro que nos persegue", eu digo que nos assombra, mas criamos uma tal empatia com Adriana e o filho, prendemos a respiração juntamente com eles e corremos pelas páginas na esperança de que ambos encontrem uma saída da teia malevolamente tecida à volta deles, ansiando para que se libertem, venham ao de cima, inspirem finalmente o ar de que precisam e consigam, enfim, deixar de viver em apneia.

Que leitura!  que difícil que é fazer-lhe justiça. 

Não deixem escapar este livro, é poderoso, impregna-se em nós e obceca-nos. Adoro este efeito de um livro em mim. Que experiência de leitura.

27
Jun24

#10/2024 - A voz das Mulheres, Miriam Toews: ethos e logos.

livrosparaadiarofimdomundo

 

Alfaguara

240 páginas

Mais uma vez a Alfaguara continua a ser a editora que melhores horas de leitura me tem proporcionado...

A primeira vez que vi este livro, nem sequer li a sinopse. É verdade, parecia-me que, pelo título, não seria bem um livro para mim. Vai daí, mantém-se a veracidade da sabedoria popular: quem desdenha quer comprar... Na Feira do livro de Lisboa, a minha filha falou-me nesta obra, referindo que as críticas eram boas, concedi ler a sinopse e ainda não foi aí que ele me interpelou. Mas uma mãe tem tendência a fazer a vontade à filha e o livro veio para casa. Foi o primeiro que li no (abundante) rescaldo da feira do livro... que pena seria se não lesse este livro! Comecemos, por isso, pelo fim, é, das leituras deste ano, a que recomendo com mais veemência. A dizer a verdade, este ano tenho muito para recomendar!

A voz das mulheres parte de um episódio verídico. Numa remota comunidade menonita, algumas mulheres são vítimas de violência sexual, que os homens começam por atribuir a demónios e ao castigo pelos seus pecados. No entanto, a verdade revelada é bem atroz. As mulheres tinham sido sedadas por alguns homens da comunidade para as violarem repetidamente. Dito assim, a questão que se coloca é para quê ler este livro? Mas é que o livro não se debruça sobre a narrativa dessas atrocidades, antes sobre a forma como estas mulheres tentarão superá-las e sobreviver-lhes, resgatando a sua vontade e, pelo caminho, a sua dignidade, grandeza e coragem. 

A narrativa concentra-se - quase à maneira das tragédias clássicas pela concentração espácio-temporal - em duas sessões secretas que as mulheres levam a cabo para discutirem o que fazer sobre o que lhes aconteceu. A tessitura dessas conversas é que torna o livro interessante. Há páginas inesquecíveis neste volume. As mulheres discutem a sua condição, o perdão, a existência de Deus, a maneira como se posicionam face aos imperativos da comunidade a que pertencem, dividem-se entre a sua identidade e a sua dignidade. São seres apenas de palavras, são o seu prórpio discurso e é pelo discurso que crescem, superam as grilhetas que as oprimem, revelando-se seres heróicos, dotados de uma improvável capacidade de amar. Enfim, estas são das páginas mais belas que já li em livro. 

O que me parece extraordinário é a forma subtil como o horror vivido por estas mulheres é revelado ao longo do livro, sem sensacionalismo, mas com crueza, nunca em quantidade, são pouquíssimas as revelações feitas, mas irrompem com uma força que nos dilacera e abala inexoravelmente. Diria que a autora, mais do que uma contadora de histórias, é uma fazedora de histórias, no sentido em que as tece, que as urde, palavra a palavra, revelando tudo, sem o dizer diretamente. É a arte de dizer, é ser pela palavra, porque é através do silêncio que se anula o outro, é quando não o validamos, quando não o reconhecemos que lhe roubamos tudo, a identidade, a dignidade, a existência. O facto de as mulheres terem recuperado a sua voz é que lhes permite libertarem-se do jugo, da violência. Por isso este livro, mais do que ação, é manifesto como potenciador da ação, da coragem, da descoberta pasmada de que as mulheres podem tomar o seu destino nas mãos.

Talvez nenhuma destas palavras faça verdadeira justiça a este romance extraordinário, mas não desdenhem, mercemos este livro!

11
Mai24

#10/2024 - Hotel Savoy, Joseph Roth: da metáfora

livrosparaadiarofimdomundo

Hotel Savoy

D. Quixote,

154 páginas

Joseph Roth é um dos meus autores preferidos. Há qualquer coisa na sua escrita que me prende, não sei se umas certas notas de nostalgia, não sei se a elegância da escrita, não sei..., mas gosto sempre dos seus livros.

Este Hotel Savoy, parafraseando uma das frases do próprio livro, parece-me o mais russo dos seus romances, quase próximo de Dostoievski. Há, quanto a mim, uma tensão social latente, emergente, entre os habitantes da cidade onde se situa o Hotel, entre os hóspedes do Hotel, entre os hóspedes e os funcionários do hotel. Tudo é tensão neste livro.

Gabriel Dan é judeu, foi prisioneiro de guerra, durante três anos, num campo na Sibéria, regressa a casa, passando por uma espécie de peregrinação desde o campo de prisioneiros, desempenhando várias funções subalternas e assalariadas até ali chegar: a uma cidade que fica às portas da Europa, ao hotel mais europeu daquela cidade oriental. Ser o Hotel mais europeu significava que tinha um porteiro fardado, criadas de toucas brancas, casas de banho inglesas, elevadores, lâmpadas elétricas... enfim, pequenos luxos conotados com a Europa.

Não consigo deixar de ver aquele hotel, onde o protagonista, apesar de pobre e desenraizado, pode hospedar-se, embora num dos quartos mais baratos, como uma metáfora da Europa, tanto do período após a Primeira Guerra Mundial, como da de hoje, aquelas em que vivemos: igualmente ameaçada pela guerra, igualmente percorrida por hordas de pessoas em busca de  um lugar de ser com dignidade. Esta hipótese de leitura sustenta-se em algumas passagens da obra, que são quase fragrantes, denúncias de um quadro de pobreza, abandono, assimetrias sociais e ecnómicas, que volvido um século, persistem na Europa e continuam a separar as pessoas em função do que possuem. No Hotel Savoy, as pessoas importantes, ricas e poderosas estão hospedadas nos andares inferiores, nos quais os quartos são arejados, amplos e limpos por criadas de touca branca, porque neles há uma maior preocupação com a limpeza. Quanto mais se sobe nos andares, maior é a pobreza, quando não a indigência dos hóspedes, doentes, dependentes de usurários que deles se aproveitam, subalimentados, vendo-se obrigados a entregarem-se a papéis degradantes para poderem subsistir. 

Diz-nos o narrador que, em todas as cidades do mundo, há sempre hotéis Savoy, onde uns vivem e outros morrem... 

Os excluídos, por tudo isto, encontram-se sempre em trânsito, ambicionando um outro lugar, acreditando que, algures, haverá uma cidade, sempre a próxima cidade, um outro país - linha do horizonte que nunca se alcança - onde finalmente poderão ser felizes e escapar à sua condição: Viena, Paris, a América.

É impossível não estabelecer o paralelismo com a atualidade, com a Europa de hoje, a cuja porta tantos tentam uma vida melhor.

Repito, gosto de livros que me interpelam, que me deixam cicatrizes, que me levam a olhar para o outro com as lentes da empatia e da tolerância, daí que goste deste livro, ainda que ele me tenha deixado um pouco desconcertada.

Recomendo para ler e, em especial, para reler, porque nem todas as implicações são óbvias na primeria leitura.

 

 

07
Mai24

#9/2024 _ Felizes anos de castigo, Fleur Jaeggy: a força das palavras não ditas

livrosparaadiarofimdomundo

Felizes Anos de Castigo

Alfaguara

113 páginas

Não conhecia a autora, foi uma compra arriscada. Devemos sempre procurar conhecer outros autores, para não corrermos o risco de perder boas leituras. Risco sempre de evitar.

Esta obra é um livrinho, nem dá para uma tarde de leitura. No entanto, ler um livro sem interrupção chega a ser muito satisfatório. Há um prazer quase sensual em terminar um livro e depois arrumá-lo na estante, é uma sensação de plenitude. Enfim, chega dos meus excursos sobre a leitura.

Felizes anos de castigo correspondem à designação dos anos que a protagonista/narradora passou num dos colégios internos. A história deste livro conta especificamente os anos num desses colégios, com a idade de catorze anos. Percebe-se como a convivência entre as meninas do colégio, oriundas de vários pontos do globo estava profundamente hierarquizada, como todos os movimentos assentavam em táticas para se conquistar um lugar, se mais ou menos popular, mostrar-se mais ou menos acessível, conseguir fazer amizade com quem se escolheu. Esse esforço constante, podia levar a que as jovens emulassem uma das escolhidas como caminho para a afirmação.

É uma história tecida de fascínio, sedução, risco e muita, muita ambiguidade. 

O livro está escrito de forma quase seca, fria, distante, como se filtrada por um tecido fino, uma espécie de sfumatto literário. Faltam-nos algumas palavras, enerva que as coisas não sejam dissecdadas, fiquem numa espécie de limbo que resulta de uma "filmagem", que não nos dá as explicações que sentimos necessitar. Acresce que todo o livro é perpassado por uma forte tensão: social? emocional? sexual?.

Outra imagem que me ficou do livro é como se houvesse na história um jogo de espelhos: a narradora cede ao fascínio, quase obsessão por Fréderique, mas exerce sobre nós o mesmo fascíno. ela tenta compreender a essência, o je ne sais quoi,  da colega. O leitor tenta o mesmo com a protagonista, que nos seduz, que nos escapa, a quem queremos também conhecer e compreender, talvez agradar.

"infância vetusta"; "alegria pela dor", "morre quem não existe" são núcleos semânticos que remetem para uma espécie de prenúncio de morte, de podridão, de dor que perpassa pelas páginas do livro. A frieza das suas frases é reflexo da frieza, da distância entre estas jovens e as suas famílias, cujas ordens vêm de longe, escritas, palavras não articuladas. É profundamente nostálgico este livro.

Fica, da leitura, uma espécie de perplexidade, de incompreensão. Fez-me lembrar os contos de Hélia Correia, há qualquer coisa de maligno, de selvático, de contido, que não chega a libertar-se, mas que fermenta sob aquilo que se escolhe desvelar. Leitura curiosa, poderosa, desafiadora. Literatura, portanto.

 

 

06
Mai24

Um toque no coração II

livrosparaadiarofimdomundo

Há tempos, a Sofia procurou-nos para estagiar connosco. 

Aceitamos, normalmente aceitamos quem nos porcura para completar a sua formação. É preciso estar aos serviço da comunidade e contribuir para a formação e o aumento das qualificações da nossa população.

Como estagiária foi marcante a sua delicadeza e a sua gentileza. Foi marcante também a disposição para trabalhar com as crianças.

Quando o estágio terminou, foi despedir-se de mim, no mesmo tom.

Às vezes, cruzamo-nos com pessoas a quem apetece abraçar, a quem apetece manter por perto, tal é a sua aura de gentileza.

A partir daí, em momentos especiais, recebo uma mensagem da Sofia, pelo Natal, por outro pretexto qualquer. São mensagens simples, mas trazem com elas uma brisa de carinho, de reconforto, de calor. Deixam em mim uma forte impressão de gratidão. Saber que, algures, no tempo e no espaço, alguém, desinteressadamente, tem de mim uma memória que me faz merecer esses gestos de humanismo, de uma grandeza invejável, pois quem se dá ssim aos outros é uma inspiração para quem tem o privilégio de merecer essas formas de amor.

Ontem, dia da Mãe, recebi mais uma mensagem da Sofia, a desejar-me um bom dia da Mãe. Mais um gesto bonito, gratuito, que me mereceu este texto. Como testemunho de que podemos manter acesa a fé nas pessoas, os maus não vencem sempre, fazem é mais barulho; como forma de agradecimento, porque me sinto muito humilde perante este gesto; como homenagem à Sofia, por ser especial e espalhar o bem sem esperar nada em troca.

Este texto é para si, Sofia.

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