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Livros para adiar o fim do mundo

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Um cantinho para "falar" de livros, para trocar ideias, para descobrir o próximo livro a ler.

Livros para adiar o fim do mundo

23
Fev23

#janeiro/2023 - ler mais do que escrever

livrosparaadiarofimdomundo

De maneiras que ando a ler mais do que escrevo.

Já fui do tempo em que lia e escrevia sobre o que lia.

Agora é mais ler.

Mas gosto muito de partilhar o que li, que cá egoísta é que não. Se eu gostei, quero que o maior número possível de pessoas possa ter a mesma experiência. 

Ora fica aqui a lista dos livros lidos em janeiro. No final da lista, conto-vos quais os que mais gostei e aqueles que penso que acrescentam qualquer coisa à vida.

Let's look at the trailer:

#1/2023 - A família Netanyhau, Joshua Cohen, p.261;

#2/2023 - Os anos, Annie Ernaux, p. 196;

#3/2023 - O perfume das flores à noite, Leila Slimani, p. 137;

#4/2023 - O Acontecimento, Annie Ernaux, p. 87;

#5/2023 - Roteiro Afetivo das palavras perdidas, António Mega Ferreira, p.212;

#6/2023 - Flecha, Matilde Campilho, p. 262;

#7/2023 - A mais preciosa mercadoria, Jean-Claude Grumberg; p. 118;

#8/2023 - O jovem, Annie Ernaux, p. 38;

#9/2023 - Uma paixão simples, Annie Ernaux, p.59

Para quem gosta de sugestões, ponham na vossa lista A família Netanyhau, Os Anos, O Acontecimento e, claro, o Roteiro Afetivo das palavras perdidas, do meu escritor de eleição dos últimos tempos. Flecha é o mais curioso, uma pérola muito curiosa. A mais preciosa mercadoria uma narrativa breve com a força da partícula do Big bang.

Entretanto, deixo-vos a lista de fevereiro, que também tem coisas interessantes.

2023 está a ser um bom ano.

12
Jan23

#2/2023 - Os Anos, de Annie Ernaux: mapeamento de uma era.

livrosparaadiarofimdomundo

Os Anos

Livros do Brasil

196 páginas

1. Os livros do Brasil são míticos para mim. Estão intimamente ligados à minha juventude, saída dos livros infanto-juvenis. Estão cristalizados na minha memória, na livraria da cave de umas galerias que existiam na Nazaré, onde passava a quinzena de agosto. Simbolizam o primeiro contacto com a literatura de adulto e contribuiram definitivamente para a minha formação literária e cultural. 

2. Nunca tinha ouvido falar de Annie Ernaux, até à distinção com o Nobel, e não me envergonho disso, porque também não sou leitora de primeira viagem e sou cética quanto a prémios e publicidade eufórica. O que me deixa uma enorme preocupação, depois de ler este livro: quantos mais escritores brilhantes e livros fundamentais ainda não entraram nomeu destino. Annie Ernaux passou a ser uma autora a conhecer. No momento em que escrevo, repousa ao meu lado, à espera de ser lido, o segundo livro que adquiri: O Acontecimento. A verdade é que fui lendo em diagonal alguns comentários muito apreciativos sobre este Os anos e deve ter constado de algumas das listas que gosto sempre de consultar.

3. Sintomaticamente - que sabemos nós sobre conjugações astrais? - Os Anos, editado por Livros do Brasil, devolveu-me esses tempos de leitora em formação, versando sobre os meus anos de formação, sobre a minha identidade.

4. Assim que comecei a ler este livro, tomou-me uma sensação que perdurou ao longo de toda a narrativa: a de identificação, a de reconhecimento. Eu conheço a realidade descrita. Embora mais jovem que a personagem do livro, dado o atraso de Portugal em relação à França, não parece ter havido grandes diferenças entre a década de 50 em França e a de 70 em Portugal. Este romance é como uma topografia dos anos que corresponderam à segunda metade do século XX e a primeira década do século XXI. Os grandes acontecimentos que marcaram uam memória coletiva, global, estão lá e percebemos pelo texto a forma como nos condicionaram, como nos formaram, como os vivemos e como, muitos de nós, os interpretamos. Ler Os Anos é um exercício de revisitação, de conforto, de quem acena a cabeça e confirma, murmurando, foi assim, foi, lembro-me disto, é verdade...

5. A técnica narrativa do romance é interessantíssima, já que a personagem feminina que assume o protagonismo - será protagonismo?- vai-se desenhando no espírito do leitor conforme se vai materializando nos registos que emergem do texto. A ver se consigo explicar: o narrador constrói a a personagem como quem consulta um velho album de fotografias, as mais antigas, as poses, o olhar, a roupa, mas a presença da personagem na narrativa começa por ser imprecisa, surge de tempos a tempos, é mais uma fotografia e vamos acompanhando mais o seu desenvolvimento físico do que espiritual, ou cultural. Com a passagem dos anos, essa figura difusa vai-se precisando, cada vez mais nítida, ocupando cada vez mais espaço na narrativa e já tudo se centra na forma como, já madura, perceciona, problematiza, vive e interpreta a passagem do tempo e os acontecimentos que o marcam. Daqui resulta que o romance está estruturado como se fosse - e é - um exercício de remomoração, em que os acontecimentos mais afastados no tempo não podem ser relatados a não ser por interposta pessoa, isto é, por aproximação através de marcos, recuperados a intervalos mais ou menos longos. Tudo é sobre memória. 

5. Há outro grau de identificação: a personagem é feminina, é professora e vai-se aproximando do livro a haver ao longo de um percurso de vida em que a ideia do livro vai aparecendo como um sintoma intermitente. Até que o livro se torna o projeto para o qual se volta e é quase como se a narrativa se fechasse sobre si mesma, pois o texto é o resultado da concretização desse projeto que se vai avolumando ao ritmo das experiências vividas. Há um gosto experimental pelas palavras a que não pude fica indiferente também. 

6. Não tenho bem a certeza se era isto que queria escrever, mas, por vezes, há qualquer coisa que fica sempre lateralmente à nossa perceção, que parece não poder ser alcançado, que escapa ao logos. Fica esta tentativa de dizer.

7. O ano continua a correr bem: boas leituras!

08
Jan23

Um futuro (negro) apresenta-se hoje

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No Brasil, o Congresso, o Planalto, o Supremo Tribunal foram invadidos por hordas - sim, hordas -, de bárbaros, de fundamentalistas que atacaram o coração da democracia brasileira.

Partiram, destruiram, pavonearam-se, rebolaram-se, invadiram, estragaram, alarvemente... e filmaram-se e fizeram selfies, orgulhosos de cederem à barbárie absoluta.

Há anos, quando os fundamentalistas islâmicos destruiram Palmira, ainda podíamos pensar que eram os outros. Quando foi nos EUA, já era tão perto e tão chocante, Hoje foi num país irmão. Os sinais estão todos aí.

A impunidade dos discursos incendiários, as bolhas informativas, as redes sociais, a desinformação, a deliberada propagação de fake news, os extremismos, os radicalismos, trazem-nos até aqui. Sempre que compactuamos com cada alarvidade que se diz, sempre que alinhamos com qualquer discurso preconceitusoso ou intolerante, é para aqui que caminhamos. É um erro pensarmos que cá é diferente, que a Europa está a salvo num mundo cada vez mais global. É um erro pensarmso que é muito longe. É um erro pensarmos que se trata de pessoas mergulhadas na treva. São gente como nós, a viver num país democrático, cuja vontade, expressa no voto, legitima este governo. São pessoas que acreditam na legitimidade do que estão a fazer. Vivemos tempos muito preocupantes e, cada vez mais, é preciso estarmos alerta, querermos saber, perceber, aprofundar, cruzar informação.

Não podemos varrer estes sinais para debaixo do tapete: autocarros de manifestantes, gente organizada para o mal, silêncios suspeitos de quem devia erguer-se a defender a democracia e as insituições que a servem, a cruz usada como arma para derrubar os vidros, a alegria, meu Deus, a alegria com que se perpetuam estes atos. Polícias facilitadores e que se fotografaram a pactuar com os criminosos que deviam barrar. 

A comunidade internacional repudia estes atos e Lula da Silva recebe um país doente para governar, um país deliberadamente envenenado para que isto acontecesse. É um cenário extremamente preocupante.

Que o Brasil possa ser salvo, para que todos nós possamos ter esperança. 

03
Jan23

#1/2023 - A Família Netanyahu, Joshua Cohen: o encantamento

livrosparaadiarofimdomundo

A Família Netanyahu

D. Quixote

263 páginas

 

Balanço do ano: 2023 está a correr muito bem! Não, não me enganei, é mesmo de 2023 que estou a falar e isto porque acabei de ler um livro que é mesmo muito satisfatório, que me deixou muito divertida, surpreendida e também comovida, pois encontrei nele referências que estruturaram a minha cultura e o meu pensamento.

A primeira vez que ouvi falar neste livro foi no Programa cujo nome estamos proibidos de dizer e já não me lembro quem dos "ministros" o recomendou, mas ficou-me a referência. Depois cruzei-me com ele na lista de livros publicado pelo Expresso (leio-a sempre com muita atenão, pois já de lá tirei muito boas sugestões de leitura) e, por fim, a minha filha, sábia como ela só, incluiu-o nas minhas prendas de natal (parei aqui a refletir na utilização de prendas em lugar de presente, mas prenda tem mais a ver com a minha infância, portanto fica prenda).

Foi a minha primeira leitura do ano, e que leitura. Eu que já tenho medo de publicidade a livros, de grandes entusiasmos e que já começo a ter medo de ter opinião, que é muito arriscado não ir na corrente e por-me em desacordo com hordas de gente que é toda da mesma opinião que alguém manifestou aos gritos. Pois bem, toda a publicidade é merecida, justificada e fica muito aquém desta experiência de leitura.

O brilhante autor deste livro foca-se num episódio mais ou menos marginal da família Netanyahu, da qual sairia o famoso Benjamin Netanyahu, que entra no livro ainda como criança, e parte dele para traçar uma narrativa surpreendente, a beirar o caricatural, com diálogos hilariantes, em que os intervenientes parecem estar cada um a ter a sua própria conversa. Dito assim, o romance pode até parecer superficial, leviano, anedótico, mas essa é só a primeira camada. O autor demonstra um domínio narrativo impressionante, pois inclui factos relevantes para a história dos judeus, erudição literária e política, espírito crítico, sarcasmo transversal, conhecimento do ambiente de corte do mundo académico, uma visão satírica das famílias americanas e, dentre estas, das famílias judias na América. E isto tudo, que parece uma manta de retalhos, está muito bem tecido e faz um sentido enorme e todas as peças parecem importantes para o conjunto. Se ficaram interessados e vierem a ler o livro, depois venham contar-me o efeito que vos causou a última frase do romance.

Saliento ainda uma peça do livro que, para mim, formada em humanidades, foi tão importante como o romance propriamente dito, o capítulo "Créditos, incluindo um especial", no qual o autor contextualiza e aprofunda alguns factos que romanceou no seu texto. Desse texto faz parte um testemunho da relação que o autor manteve com Harold Bloom, que foi quem lhe contou o episódio central do romance, que é enternecedor, talvez, porque também eu li sempre Bloom com muito interesse. Por fim, guardem-se para o último documento de todo o livro - não há spoiler aqui, já que o efeito surpresa é fundamental - e preparem-se para soltarem umas boas gargalhadas, não sem evitarem alguma surpresa e até perplexidade.

A sério, deixem-se convencer e vão ler este livro.

A continuar assim, 2023 será um grande ano. Li uma daquelas frases de facebook, que desejava maios ou menso isto: que todos os dias deste novo ano nos levassem a dizer que estava a ser o melhor ano das nossas vidas. Em termos literários já pude dizer isso.

 

 

02
Jan23

1#2023 - Dissipatio I

livrosparaadiarofimdomundo

Foi final do ano, fecho de ciclo, inspiração para uma nova volta, uma nova viagem, que começa agora, findos os fogos de artífício(que não vi), as festas (a que não fui), as viagens a destinos exóticos (que não fiz), os desejos (que não formulei), as passas (que eram arandos), os brindes (a única parte do ritual que respeitei).

Nos últimos dias do ano velho, fui, mentalmente fazendo balanços, como  a maior parte dos mortais (acho eu) e dessa contagem houve reflexões que foram ficando e que me servirão para outro balanço, o impulso para empreender pequenas mudanças que, a acontecerem, hão de ser visíveis à distância.

É nesta parte que os incautos que me leem pensam: oh, não, mais um post sobre resoluções de ano novo. É quase isso, mas o blog é meu e eu escrevo sobre aquilo que eu quiser, nem que seja para daqui a uns meses pensar "fui mesmo eu que escrevi isto?"

Ora bem, em 2022, não fiz nada do que queria fazer! Não perdi peso, perdi a determinada altura, mas, como sou sovina, recuperei tudinho outra vez. Li muito menos do que queria, mesmo menos, longe do livro por semana, que é sempre o meu objetivo. Não cuidei mais de mim. Senhoras, ficam a saber que não limpei sempre a pele à noite e, em dias mesmo maus, inclusivamente dormi com a maquilhagem que voltei a usar, depois de já não me poder esconder atrás das máscaras, de maneiras que acordei muitos dias com os olhos borrados de rímel e o ar de um panda com insónias há duas semanas. De manhã, limpava tudo e voltava a sujar com mais uma camada de maquilhagem. Para compensar voltei a usar protetor solar. Não cuidei da casa como gostaria, que é um adversário que me vence sempre. Lá vou eu de peito feito  achar que esta semana é que é, que vou chegar a sábado sem uma peça fora do sítio, nem uma chávena no lava-loiça, nem um sapato atravessado, mas até ver nunca aconteceu, acho que são mitos urbanos. Não bebi  dois litros de água por dia, não fiz mais exercício, nem menos, já agora, porque simplesmente não faço (há aqui um lamentável exagero, creio que fiz umas dez vezes passadeira). Em suma, no final de 2022, não era uma versão melhor de 2021, resta-me a esperança de ter sido melhor pessoa, mas como isto não é confessionário, permito-me reservar esse balanço apenas para mim, também para não envergonhar ninguém com as minhas boas ações.

A verdade é que tenho vivido como se fosse imortal, como se não envelhecesse, como se não perdesse capacidades e massa muscular, como se o meu corpo continuasse a ser invisível, levando-me de um lado para o outro, sem que tenha consciência dele, sem que sinta dor, nem limitação, para além da consciência do excesso de peso. Mas é um corpo que me tem servido bem, que aguenta a minha energia, que abençoadamente é sempre muita e me deixa fazer coisas e coisas e coisas. Eis que, no final do ano, o meu corpo se materializou e começou a gritar-me que estava ali e que precisava de manutenção, ou pelos menos de algum cuidado. Dei comigo a cansar-me de posições, a ter cosnciência das costas, a arrastar um braço que se lamenta a cada movimento rotativo, a ter problemas de sono que persistiram mais do que uma ou outra noite, a ter de voltar atrás, porque o corpo se atrasava durante o dia.

Em 2023, vou ter de cuidar deste corpo, preciso dele, logo não o posso deixar esquecido, ou ir rejeitando as partes que vão funcionando com mais dificuldade. Tenho de arranjar o que está desgastado. Esta é a grande resolução: autocuidado, físico e emocional. As minhas resoluções deixaram de ser uma epopeia de coisas que nunca vou concretizar, afuniliaram-se, objetivaram-se na crença de que se todos os dias conseguir ser um pouco mais,fazer um pouco mais, cuidar um pouco mais, juntando isto tudo, no final de 2023, terei feito grande diferença. Daqui a 365 dias, ou sei lá quantos, conto-vos como me saí.  

30
Out22

Insólito e a brutalidade da realidade.

livrosparaadiarofimdomundo

Na fila do supermercado, estava um jovem um pouco deslocado, tímido. Perguntei-lhe se estava na fila. Acenou que sim. Disse-lhe que era melhor alinharmo-nos com a fila. Indicou-me que passasse à frente. Recusei e pedi-lhe que se colocasse à minha frente.

Entretanto, anunciaram que iram abrir a caixa 3. As pessoas atrás de nós precipitaram-se para a caixa 3, daquela maneira que não posso deixar de amar: a correr não vá dar-se o caso de perderem a oportunidade de sentirem que ganharam o dia por ultrapassarem os pouco inteligentes que respeitam a ordem nas filas. Permanecemos na fila, eu com a minha família e o jovem. Pela situação que vim a testemunhar, ainda bem que assim foi.

O jovem colocou as compras no tapete e, distraidamente, fui anotando aquilo que ele estava comprar: bananas, lima, um frango, duas embalagens de quiabos, três caixas de atum... e fui pensando que seriam compras para a sua semana. Entretanto, quando a menina da caixa indicou o preço das compras tudo se precipitou: aqueles bens alimentares custariam 20 euros. A surpresa, primeiro, o desnorte depois. O jovem começou a tirar do saco as compras que já tinha arrumadas e, num fio de voz, balbuciou qualquer coisa ininteligível. A menina perguntou-lhe quanto tinha e ele respondeu 10 euros e, lentamente, mas com atrapalhação, começou a tentar escolher o que poderia levar. Nesse momento, tive um momento de inspiração e disse à menina que pagaria a diferença. Num momento confuso, a menina explicou-lhe que podia levar tudo, enquanto ele continuava a estender os seus 10 euros. Perante o seu desamparo, disse à menina que pagaria tudo.

Quando ele percebeu, olhou-me e começou a agradecer inúmeras vezes. Perguntei-lhe se queria ajuda com as compras e ele continuava a dizer-me que Deus me recompensasse cinquenta vezes. Arrumámos as compras e ele foi. Eu fiquei a pagar as minhas compras. Não olhei em volta, desejosa de que tudo aquilo tivesse sido discreto e que ninguém se tivesse apercebido.

Obviamente, era um imigrante, obviamente perdido na língua, nos preços, talvez até na moeda. Obviamente, deslocado, só, longe da sua terra, longe da segurança, ou fugido da insegurança.

Fiquei tão triste. Gostava tanto que fosse possível fazer mais do que isto. O desconcerto do mundo é uma coisa que me aflige tanto. Não consigo deixar de pensar, a propósito do discurso de uma certa força política, que exigia a fiscalização à forma como os contribuintes portugueses vão gastar os 125, ou 50, distribuídos, que faz da desconfiança face aos mais desfavorecidos uma forma de estar, um paternalismo pernicioso, como se quem tem menos não soubesse senão gastar em drogas e bebidas alcoólicas...Dizia, não consigo deixar de pensar nisto: que será viver este desamparo, esta estranheza, esta solidão, este arriscar-se a isto, porque é o melhor a esperar.

Fiquei tão triste com o desconcerto do mundo.

24
Out22

#8/2022 - No jardim do Ogre, Leila Slimani: espreitar os abismos da alma

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - No Jardim do Ogre

Alfaguara

178 páginas

Leila Slimani foi, em conjunto com António Mega Ferreira, uma das minhas descobertas em 2022. Ao todo já li três dos títulos que tem publicados em Portugal. 

Imaginem o quadro: um pouco antes do almoço de domingo, enquanto se espera que o peixe fique pronto, pega-se num livro para queimar uns minutos... e cai-se numa teia que nos prende e da qual nem queremos assim tanto sair.

A abertura do romance, com uma Adéle a ceder, depois de uns dias a tentar resistir, às pulsões do seu corpo, a entregar-se ao vórtice que a consome como quem emerge da água e não como quem se afoga, é como uma alívio. E o leitor arrastado nestas duas primeiras páginas suspende também a respiração, só expira quando Adéle obtém o que quer e, como ela, mergulha numa espécie de relaxamento, para logo voltar a retesar-se, porque a resposta aos seus anseios não quer dizer nunca, como se verá ao longo da leitura, equilíbrio ou serenidade, é sempre mais medo até ceder de novo aos seus impulsos.

Adéle é ninfomaníaca. Apesar da vida perfeita em Paris, mergulha constantemente numa espiral de queda e degradação. Esse constraste não chega para definir o livro, porque, pelo meio, temos o amor de Adéle pelo filho, o seu terror de alguém vir a conhecer o seu segredo, a necessidade de manter a sua segunda vida a salvo - segunda vida, porque é no seio da família, com os colegas de profissão, com o marido, com os amigos e familiares que Adéle finge. 

Apesar de tudo isso, Adéle não evita qualquer risco, aliás procura-o, compraz-se nele, desde contratar quem a satisfaça até seduzir os amigos mais próximos. Leva os homens que seduz a uma espécie de adição, levando-os a prometer-lhe tudo, mas Adéle não deseja mais do que tem, só o seu corpo é sujeito de desejo e a sua concretização Adéle pode encontrá-la onde quiser, enquanto for jovem, bonita, atraente e puder chamar a atenção dos homens, que parecem cair sempre na sua teia de sedução assim que ela queira.

Adéle teme a velhice, mas não pelos mesmos motivos que as outras mulheres. A velhice a terroriza-a porque significa o fim da sua adição.

O livro é também sobre o amor, a abnegação de quem ama e, mesmo sabendo a verdade, procura a redenção para o ser amado, ser capaz do perdão e viver mergulhado noutra espécie de medo.

Lê-se, não enquanto o peixe se faz, mas numa tarde, num sorvo, num hausto tenso e quase desesperado. O leitor oscila entre a repugnância e o fascínio, a condenação e o desejo salvífico, a censura e o perdão, acabando por torcer muito por Adéle.

Recomendo a leitura. Como dizia há dias Gonçalo M. Tavares, mas não vão à procura de uma leitura para descansar, se é isso que querem, tal não mora neste livro de Leila Slimani. Se vale a pena? Vale muito a pena.

20
Out22

Ideias para fugir ao fim do mundo: ser bloqueado na vida real

livrosparaadiarofimdomundo

Isto não anda nada bem.

Afinal não ficamos todos bem, alguns ficaram bem pior: uns com muito menos do que tinham antes, outros soltaram a gárgula que vive dentro deles e desvendarem uma face violenta.

Hoje é da violência que me apetece falar. Quer dizer, não me apetecia muito, mas a violência esteve tão presente no meu dia, que escrever sobre as várias formas através das quais me visitou me parece uma boa forma de a exorcizar.

Apareceram à minha frente dois garotos com o rosto marcado pela agressão. Tinha sido um outro, um miúdo de dezasseis anos, que se sentira provocado pela forma como tinha sido olhado e resolvera tratar disso com uma bofetada. Da mesma forma, um pouco mais à frente, resolvera dar um murro a um outro mais ou menos pelos mesmos motivos. Tudo aquilo parecia vir a escalar nas horas seguintes. Preocupam-me os três. Os agredidos, porque ninguém tem de ou merece ser agredido, porque ninguém tem se estar exposto à coação, à limitação, à instigação ao medo. Preocupa-me o miúdo que agrediu os outros. E se ele não for capaz de aprender que não é assim que se resolvem as coisas? E se ele não for capaz de olhar para o outro e não conseguir sentir empatia e viver a verdade de que só somos dignos quando tratarmos os outros com dignidade?

Recebi vários emails redigidos num tom que transpirava animosidade, muita consciência do direito de questionar - que temos -, de inquirir - que temos -, de discordar - que temos! Mas não sob qualquer forma, não sob qualquer pretexto, não sob uma só perspetiva e que, invariavelmente, é sempre o ser-se cioso de direitos e dos deveres dos outros e nunca a assunção dos nossos próprios deveres, pelo menos o da correção, da urbanidade... E as palavras, ai a escolha das palavras.

As palavras lançadas como armas, mais como punhais, como coisas afiadas para ferir cegamente. Não são de cristal as palavras, são de ferro e fogo e de gelo, usadas para ferir.

Os gestos de afronta, a sobranceria, o narcisismo, o egoísmo e o egocentrismo, os egos hipertrofiados, a violência latente nos olhares e nos gestos.

Este dia quase que abalava o meu crónico otimismo.

À noite, em casa, olho as minhas estantes, aqueço-me com a manta, bebo um chá forte, cotejo os gestos de bondade que este dia não deixou de ter, as gargalhadas que dei e que fiz dar, a doçura de alguns olhares e de alguns gestos, as mensagens dos bons amigos que tenho, e vou recuperando, convalescendo desta enfermidade social, que é outra pandemia, não tão silenciosa assim, porque se manifesta em tom muito elevado e inflamado. Há-de haver, tem de haver, um refúgio para aqueles que são do bem.

Bem-aventuados os pacíficos...

Bem-aventurados os que são bloqueados... Peço para ser bloqueada na vida real por um certo tipo de gente. Onde é que se entregam os papéis?

 

 

16
Mai22

#5/2020 -O silvo do Arqueiro, Irene Vallejo: da intemporalidade do mito

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - O Silvo do Arqueiro

Bertrand Editora

208 páginas

Vou lendo, vou lendo, mais ou menos à razão de um livro por semana... um bocadinho menos.

Irene Vallejo é autora do mui famoso O infinito num junco, que é um livro que eu quero muito ler, mas do qual, como acontece frequentemente, me vou arredando, vá-se lá saber porquê. Mas ele vai acontecer um dia, sei que vai. 

Estando familiarizada com o nome da autora, chamou-me a atenção este livro que surgiu - para mim - há pouco tempo nos escaparates e lá veio ele cá para casa e eu contaminada com uma resistência: se o romance histórico já foi um dos géneros preferidos, ultimamente tenho quase fugido deste tipo de narrativas. Este, ainda por cima, tocava temas quase sagrados: a figura mítica de Eneias e os seus amores pela rainha de Cartago, Dido no mito que conheci através das traduções de Latim do 10ºano (ai que saudades de estudar Latim!) e que nesta obra é Elisa. Esta é mesmo a grande interrogação/perplexidade que não consegui resolver: porquê Elisa? Mas a autora é especialista em mitologia, pode ser que saiba coisas que eu não sei, hipótese muito, muito provável.

Começada a leitura, confesso que o livro não me agarrou logo, faltava-lhe uma certa grandeza, talvez o tom grandíloco e corrente dos épicos, talvez uma certa birra, talvez falta de tempo para uma leitura mais atenta. Depois aconteceu uma tarde de praia, com pouca gente e o livro tomou conta de mim e ganhou uma dimensaão inesperada, é um livro com uma profundidade que acabou por me surpreeender.

O silvo do Arqueiro  é, como anuncia desde o início, uma revisitação de um clássico, mais até do que isso, é a revisitação de um mito, colhendo aí aquilo que está fora do espaço e do tempo, tornando-se por isso mesmo universal. Podemos começar pelo desenho literário de Cartago, a jovem cidade que Elisa vai fortificando, criando um reino seu, ela própria exilada e sujeita a todos os perigos, imagem da fragilidade não só humana, como claramente feminina num mundo de homens, para homens, dominado por homens que querem dominar outros homens e onde as mulheres se restringem ao gineceu, às escravas e, só em raros casos, a rainhas constantemente acossadas. Não há uma preocupação excessiva em fazer da cidade de Cartago um fresco histórico: portos e ruas, açoteias e palácios, casebres e baldios existiram em Cartago e existem em qualquer metrópole. É Cartago, mas podia ser uma qualquer cidade.

As personagens cingidas às suas demandas, às suas ambições, ao sonho e à errância: Elisa mais Penélope do que Dido; Eneias, o errante, aquele que calcorreia costas inóspitas à procura de um lugar de ser, onde possa enterrar e esquecer o passado marcado pela guerra, pela morte, pelo perigo, pela traição e pelos seus próprios demónios; Ana e Iulo, duas crianças perdidas no mundo dos adultos, demasiado frágeis para poderem fazer valer as suas razões, entristecidos num mundo em que vigora a lei do mais forte; a insuficiência do amor para sanar conflitos e corrigir hesitações e equívocos - tudo o que acontece tanto nessa Cartago mítica como num estado atual, onde a liberdade individual se verga a valores que a estiolam  e a esmagam, seja num tempo fora do tempo, seja na Roma imperial de Augusto, seja no presente do nosso quotidiano. Um mundo de sempre onde até os deuses se enganam e são ultrapassados.

Vallejo toma a universalidade da epopeia de Vergílio antes de ser obra literária, dá-nos o tema antes da obra e apresenta-nos Virgílio assomado pelas dores de qualquer escritor: a procrastinação, a fidelidade a si mesmo,  a dúvida, o sofrimento atroz que é escrever. Essa enigamática figura que, séculos depois de Eneias e de Elisa, perscruta o passado para explicar, justificar e celebrar o presente, seja como dever, seja como epifania. É neste passo que o romance se aprofunda, se afirma e se desdobra em múltiplos significados, mais do que um livro sobre Eneias, é um livro sobre a humanidade, mais do que texto é metatexto, é reflexão sobre o papel da escrita e da literatura. Não pude deixar de relacionar os últimos capítulos deste romance com algumas das reflexões do poeta em Os Lusíadas: sem poetas que as celebrem, não há grandes obras e estas funcionam por si mesmas como incentivo aos grandes feitos, quantas vezes a obra supera o assunto, sobrevivendo ao tempo, ao autor, à intenção, permanecendo como que levitando por cima dos seus fundamentos materiais, sublimando-se e vivendo por si mesma, pelo seu valor, pelo seu conteúdo, a arte maior que a vida, verdadeira promessa de eternidade: "Virgílio, moribundo, não chegou a sabê-lo, mas escreveu uma obra mais duradoura do que o próprio Império Romano. Não chegou a saber que, ao longo dos séculos, meninos e jovens vão aprender a conhecer a silhueta das palavras e a amar o fulgor da linguagem com os versos da sua Eneida". 

 

09
Mai22

#4/2020 - O colibri, Sandro Veronesi, uma excelente leitura

livrosparaadiarofimdomundo

Wook.pt - O Colibri

Quetzal

328 páginas

Estive em Faro e entrei numa livraria, isso é que é uma novidade! Apesar de ter sido praticamente empurrada para fora da loja, por já estar para fechar, em desespero de causa, perguntei se podia ainda comprar um livro e este estava na prateleira das novidades, de maneiras que veio comigo, não fosse dar-se o caso de eu não comprar mais um livro.

Claro que comecei logo a lê-lo e este livro fez-me aquilo que eu espero de um livro: agarrou-me imediatamente. Dormia a pensar nele e a procurar qualquer pretexto para lhe pegar. Acho que não o li, sorvi-o, como dizia o Álvaro de Campos, "sem tempo de manteiga nos dentes".

O Colibri - o título remete para a alcunha que o protagonista tinha em jovem - narra-nos a história de Marco Carrera, oftalmologista que vive em Florença, apresentando-no o seu percurso como é o percurso de qualquer vida: amor, amizade, família, carinho, cuidado, sonho, felicidade... e o reverso disto tudo, mágoa, infelicidade mais ou menos oculta, ódios, fraturas, morte, abismos inultrapassáveis. O livro é efetivamente uma saga familiar, marcada por uma sucessão de perdas e de impossibilidades que marcam profundamente o protagonista que, apesar de tudo, se reergue, se reorganiza, cumprindo o seu papel na terra por conta do mais puro e verdadeiro amor (terão de ler para saber do que se trata). O amor está também retratado nas suas múltiplas formas e imperfeições, em especial, como algo que muito se quer, que está ao alcance  e ao mesmo tempo irremediavelmente inalcançável. A família como núcleo que ora se faz e desfaz, marcados todo os elementos pela perda irreparável da morte de Irene, a irmão de Marco, mas também pela doença, que obriga à dedicação, à entrega. Mas o livro faz-se também do inaudito, do acaso, da revelação, de epifanias, de compreensão, ainda que tardias. Faz-se também de um ritmo que é sereno, como se a voz do narrador escolhesse propositadamente um tom menor para nos dar a conhecer esta humanidade dos seres de papel que desenha perante o leitor, é um narrador que se entrega ao seu papel de contador da história sem ceder ao histrionista, é contido, sensível, atento, gentil, mas contido.

Há depois a estrutura, a arquitetura do romance que encerra muito do seu encanto e da sua originalidade. O romance é polifónico, já que o narrador cede pontualmente a vez às suas personagens, em especial através da correspondência entre Marco e Luísa, que permite ao leitor reconstruir aquele amor malogrado a que ambos se entregaram durante anos. O livro assume diferentes perspetivas e todas se complementam, ficará de fora a perspetiva de Giacomo, o irmão que se exila nos EUA, que se recusa a responder às cartas de Marco, que o narrador silencia, mergulhando-o numa aura de mistério e de impenetrabilidade, que atormenta Marco e simultaneamente o leitor. O livro não está organizado linearmente, oscila no tempo, certos passos da obra iluminar-se-ão  mais tarde, ora pelas analepses proporcionadas pelos jogos da memória, ora pelas prolepses que antecipam momentos decisivos para as personagens. 

Por fim, há a inteligência e a cultura do autor, o recurso a todas as técnicas dialógicas que desafiam a enciclopédia do leitor: versos citados, frases de romances inseridas no discurso, reenvios frequentes para todas as formas de arte, títulos de livros, personagens retomadas de obras que marcaram o autor, músicas e letras de canções, obras de arte e de design, mistura de ficção e realidade, passagens completas de outros romances, que são tributos a autores e obras que marcaram o autor/narrador. Tudo disto culmina no capítulo final no qual o autor desnuda, revela cada passo que cerziu no seu próprio discurso, fazendo deste romance uma obra muito maior que ela mesma, maravilhando o leitor.

Por fim, há a beleza da linguagem, ancorada num equilíbrio grego, sem notas dissonantes, elegantíssima, exata, sedutora.

Este é um excelente romance, como há muito não me acontecia. Gostei tanto deste livro... e é daqueles que impõe a releitura, é preciso mais do que uma passagem para nos apropriarmos dele. Recomendo veementemente!

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