Ensaio sobre a cegueira, José Saramago, um ensaio sobre a humanidade
Editora: Porto Editora
Páginas: 346
Não podia deixar de ser, é tempo do COVID-19, por estes dias declarado pandemia, o que quer dizer que rapidamente pode (está a) infetar milhares de pessoas muito rapidamente. Acontece que, muitas vezes, a arte, os discursos, as pessoas são visionárias. Parece que os Simpsons previram a eleição do Trump e Bill Gates, há pouco mais de cinco anos, terá afirmado numa conferência que tinha deixado de temer o nuclear, parecendo-lhe que o maior perigo poderia vir de microorganismos com capacidade para contagiarem e infetarem as pessoas, guerra para a qual nos devíamos preparar. Não o fizemos, não sabemos ainda como o fazer e, perante tanto exemplo de irresponsabilidade, de falta de civismo, de egoísmo (creio não ser necessário exemplificar) lembrei-me deste livro de Saramago, uma das obras que mais me impressionou na vida.
Li este livro em 1997, muito rapidamente, daquelas leituras que se colam aos dedos e que não queremos largar por nada. Deixo uma nota de humor, encontrava-me de licença de maternidade e quase me aborrecia quando a minha criança reclamava amamentação, porque a leitura era quase uma urgência.
Como devem saber, afinal até há uma adptação ao cinema, protagonizada por Mark Ruffalo e Julianne Moore, o livro parte de uma premissa intrigante: de repente a humanidade é atingida por uma forma de cegueira, contagiosa e que se propaga a um ritmo alucinante obrigando as autoridades a tomarem medidas severas para a sua contenção. Este é o ponto de partida para uma descida vertiginosa à análise dos instintos mais bárbaros que afloram em nós perante situações que escapam ao nosso controlo, que ameaçam o nosso bem-estar, a zona de conforto que nada parecia poder por em causa. Há passagens do livro que permanecem gravadas na minha memória, sobretudo as que estão ligadas à forma como os humanos tendem a definir zonas de supremacia, opressão e violência assim que têm oportunidade. Aliás, o ditado que nos ensina que "em terra de cegos, quem tem olho é rei" é criativamente reformulado, em terra de cegos, um cego "profissional" ambiciona tornar-se rei dos cegos menos experientes e tudo é subjugado a esse oportunismo, desde a higiene à dignidade humana. É atual, não é? O espaço de quarentena onde as personagens são encerradas rapidamente se torna uma zona de guerra, do género dos jogos da fome, é lutar pela sobrevivência a todo o custo e a crueza e realismo dessas descrições nunca mais se apagou da minha memória, em especial um certa memória sensorial que agudizou um sentimento de piedade e repugnância.
Nestes dias, em que assistimos a pessoas irresponsáveis que confundem quarentena e necessidade de isolamento social com umas férias inesperadas para ir à praia, ao shopping, à esplanada, ou que, perante as universidades fechadas, aproveitam para viver a noite despreocupadamente, a leitura deste romance coloca-nos perante cenários apocalípticos que devemos a todo o custo evitar, pecisamente sendo responsáveis, civilizados e sobretudo pensando também que o nosso cuidado é sobretudo cuidado com os outros, em especial os grupos de maior risco. Face à corrida aos supermercados para abastecer a despensa com cem latas de atum (talvez acreditem que as possam atirar aos vírus quando o encontrarem), ou com 20 quilos de arroz, etc, etc, a leitura deste livro devolve-nos uma imagem muito crua do sítio para onde podermos resvalar muito rapidamente.
Estas páginas de Saramago são, compreendo-o agora, quase proféticas e consituem uma ótima lição que nos é prestada daquela forma que só a arte nos pode dar. Recomendo a leitura ou a releitura com essa intencionalidade pedagógica: não queiramos ser os cegos que não querem ver.