29
Jan14
Um dia como os outros
livrosparaadiarofimdomundo
Um dia como osoutros
De repente, abriu os olhos. Eraassim todas as manhãs, nunca precisou de despertador, estava a dormirprofundamente e depois estava acordada. Sem transição. Passava da inconsciênciapara a consciência com uma rapidez automática. Era um despertar brusco querevelava imediatamente a presença das coisas em seu redor. A pessoa adormecidaao seu lado, a luz baça da janela, os tímidos sons da rua, ainda distantes, osilêncio da casa adormecida e o conhecimento de si, inteira. Era, assim, um diacomo os outros.
Sem hesitação ergueu-se, nemdepressa, nem devagar. Enfiou a camisola de lã, as chinelas estavamnaturalmente à mão e enfiou-as ao mesmo tempo que saía do quarto. Tudo emsilêncio, gestos familiares, seguros, perfeitos, quotidianos, que nãoperturbavam ninguém. Nunca se soube de ninguém que tivesse acordado por terfeito barulho de manhã. Luzes não eram acesas, não embatia nos móveis, a camanão rangia. O dia começava e tudo parecia igual, a noite podia demorar-se umpouco mais no sono de todos.
Desceu as escadas, apagou a luz depresença e orientou-se na penumbra da casa. Ao passar pela mesa do corredor,deixou a mão correr sobre ela e a lisura da madeira confortou-a, a tepidezacariciou-lhe a pele. Entrou no quarto de banho do rés-do-chão, acendeu a luz,ligou a água, lavou o corpo sem pensar na sua madureza, uma breve flacidez queainda não tinha perdido o resto. Os gestos eram mais uma vez mecânicos,aprendidos há muito tempo, eficazes como se queria, rápidos. Saiu do banho e, aindaembrulhada na toalha, cuidou do rosto sem o ver, espalhou um creme que a mãoprocurou sem olhar. Porque era um dia como os outros, não pensou em si, nãosentiu o corpo, não se viu, não se reconheceu. Vestiu-se com conforto, nãogostava de sentir frio, procurou apenas ficar quente, a mente já ocupada com opasso seguinte, antecipação era a sua palavra de ordem.
Abriu a porta da rua e pendurou osaco para o padeiro deixar o pão, apagou a luz que iluminava a entrada, fechoua porta. Entrou na cozinha, tirou a chávena do armário, o leite do frigoríficoe aqueceu-o, pôs a toalha na mesa, torrou pão, estendeu a toalha, sentou-se ecomeu. A que lhe soube a comida não poderia ter dito, não comia pelo sabor,comia porque era preciso, por isso não se esquecia de comer, se se esquecesseficaria indisposta e teria como que um segundo despertar, mas não se sabe denenhuma vez que isso tenha acontecido. Arrumou logo a loiça que tinha acabadode usar e começou a preparar os pequenos-almoços de todos eles: mais leite, maischávenas, compota, cereais, manteiga, talheres dispostos, guardanapos. Preparouainda lancheiras. A mesa tinha ficado com um aspecto simultaneamenteorganizado, limpo e convidativo. Olhou aquela ordem e decidiu que estava tudobem. Estava agora na hora de ir buscar o pão que o padeiro tinha acabado dedeixar. Esperou um bocadinho mais, não gostava de falar com ninguém àquelahora. Já podia ir, porque antes de o ouvir, sabia que o motor estava aarrancar. Foi buscar o pão e deixou-o também em cima da mesa, mas já não tevetempo de sentir o cheiro quente, branco, tão característico que o pão deixava apairar na cozinha.
Junto à máquina, separou a roupa,branca resistente para um lado, colorida delicada para o outro. A brancaresistente era mais, enfiou-a na máquina, selecionou o programa, regulou atemperatura, deitou o detergente na gaveta. O som surdo do arranque deu-lhe osinal de que podia avançar para o passo seguinte. Destrancou a porta dastraseiras e, antes de abrir, antes de o ouvir, pressentiu as patas do cão,sôfrego dela, a recebê-la intempestivamente. Passou-lhe a mão ausente pelacabeça e ele correu para junto da taça e sentou-se expectante. Ela deitou-lhe acomida. Depois foi estender a roupa, organizadamente, seguindo um esquema queela não sabia que estava a seguir. Olhou o estendal e pareceu-lhe bem. Eradefinitivamente um dia como os outros…