30
Jan14
Um dia como os outros (II)
livrosparaadiarofimdomundo
Um arrepiolembrou-lhe que estava na rua, reentrou rapidamente e sentiu o corpo a recebera mornidão da casa. Fechou a porta e subiu aos quartos. Arejou camas, bateualmofadas, apanhou pijamas que dobrou metodicamente. Abriu as persianas e umaluz pálida, que não alegrou a divisão, espalhou-se em volta. Mais tarde, haviade vir fazer as camas, mas não agora.
Desceu e foi chegando até si o somdos filhos que saíam, ouviu o motor a trabalhar lá fora. A frase: “tchau, mãe”chegou-lhe aos ouvidos pontuada pelo afastamento deles. Chegou de novo à portae o marido acenou-lhe. Acredita que lhe devolveu o gesto, mas não pode jurar,se lhe perguntassem juraria que sim, porque era assim todos os dias, excetofins de semana e feriados. Voltou à cozinha, arrumou a loiça, sacudiu a toalha,inspirou um pouco mais profundamente, mas sem se aperceber que era isso queestava a fazer e atirou-se à limpeza daquele compartimento. Tinha de deixartudo limpo antes de voltar aos quartos. Água, detergente, panos, esfregou,limpou, secou, sacudiu, voltou a pôr no sítio, arrastou bancos, despejou olixo, aspirou, lavou. Num gesto reflexo muito seu, olhou e viu que estava bem.O seu mundo movia-se rotativamente no eixo que o sustentava e tudo era comosempre.
Subiu as escadas e entregou-se maisuma vez sem hesitações, sem uma distração, sem uma pausa, àquilo que sabia quetinha de ser feito. Sacudiu, limpou, aprumou, endireitou edredões, ajeitou ascortinas milimetricamente, estendeu tapetes, alinhou-os com os móveis, calculoudistâncias e desenhou simetrias. Um quase sorriso bailou-lhe nos lábios quando,antes de fechar a porta, se voltou e contemplou o resultado do seu esforço, estavatudo tão bem.
Era cedo, trabalhara muito rápido epodia permitir-se uma pausa. Desceu até à cozinha e preparou um chá, forte epreto como gostava, foi para a sala e sentou-se a tomá-lo. Mas já a sombra dainércia a espicaçava, como podia parar quieta, sem as mãos ocupadas? Umachávena de chá era pouca coisa para quem precisava de muito mais. Ligou atelevisão e o som entrou na sala, enchendo-a completamente. Quando deu por si,olhava as suas mãos e tinha deixado de ouvir a televisão. As mãos estavam aenvelhecer, não se notava muito, mas as mudanças na pele tornaram-se visíveis eolhou para aquelas mãos quase perplexa tão pouco estava habituada a reparar emsi, a olhar-se, a saber-se ali. A maior parte das vezes, carregava consigo semter noção do fardo, do volume, da forma, que levava, como se ela não fizesseparte da sua vida. Só raramente aquela sensação de estranheza a surpreendia edava consigo a pensar em si como alguém que existe. Franziu a testa, porque selembrou que, nos últimos dias, algo a incomodava, de maneira imprecisa.Perceber o que era aliviou-a finalmente: era esta sensação de si queultimamente a despertava. Era isso. E isso trazia-lhe uma angústia pequenina,mal se dava por ela, só agora tinha conseguido ver que estava lá já há algumtempo.