02
Fev14
Um dia como os outros (III)
livrosparaadiarofimdomundo
Torceu a boca.Estava na hora de preparar o almoço. Sacudiu a estranheza e a angústia que, detão pequenina, caiu ao chão e já ninguém a podia encontrar. Foi para a cozinhae voltou a esquecer-se de si.
Abriu o frigorífico, tirou oslegumes. Descascou, lavou, partiu, deitou na panela, acendeu o fogo. A sopaestava preparada. Tirou os bifes, bateu-os, aqueceu a frigideira, deitou alho elouro, azeite e manteiga em partes iguais, deitou os bifes e não ouviu oestalar que fizeram. Não sentiu o cheiro que começou a encher a cozinha.Pensava apenas que, quando juntasse os temperos que faltavam, podia preparar oarroz e depois a salada. Pôs a mesa. Escolheu a toalha azul, aquela quecombinava com a louça, apetecia-lhe ser mais cuidadosa. Dispôs a loiça e ostalheres com precisão matemática. Estava tudo pronto para o almoço deles.Mentalmente contou os lugares, eram quatro. Estava certo.
Saiu para a rua, inspirou, o soltinha rompido as nuvens e o brilho frio do dia de inverno confortou-a, o ventoagitou-lhe os cabelos. Sentou-se um bocadinho a sentir aquele sol. Eles estavamquase a chegar. Tinha preparado tudo com antecedência, estava tranquila.Meticulosa em tudo, sabia que não podia distrair-se com o tempo, não queriacorrer o risco de ser surpreendida agora que a determinação crescia dentrodela. Uma nuvem escondeu o sol. Ficou frio e ela sentiu-se desconfortável.Despertou, descobriu-se em si, viva, palpitante, segura, consciente. Sentiu-secoincidente, estava nos gestos inéditos que se haviam de seguir. Deixou defuncionar em automático, deixou de estar ausente. Estava dolorosamente ali.Sabia, como se se olhasse a um espelho, da ruga vincada na testa, dos olhosbaixos e fixos, do amadurecimento do corpo, da ausência da alma, da crateravazia que era a sua vontade, da estranheza que lhe embotava os sentidos. Comose nascesse de novo, levantou-se. Reentrou em casa, percorreu cada divisão,inventariando a ordem, os objetos, as cores, o silêncio. Tinha deixado o seumundo em ordem, mais uma vez, cada coisa ocupava o seu lugar, sabê-lo encheu-ade prazer. Agora via as coisas, que surgiam duras, concretas, dimensionadas noespaço. Entrou por último na cozinha e os cheiros atingiram-na, inspirou edissecou-os: alho, louro, primeiro, depois o cheiro da sopa e como última notao cheiro da limpeza. Era um dia como os outros. Saiu, deitando o último olharsobre as coisas.